Comecei a formar-me
a partir do mito
Sabia-me água
condensada entre o mar e o céu,
mas pouco mais sabia,
até ouvir dizer, muito em baixo e ao fundo,
sobre a sua vinda.
Aprendi-lhes as palavras
e a ler o que diziam:
que ele desaparecera junto a longa batalha,
abandonando o galgo
que lhe era companheiro
E mais diziam:
que, com ele, entre a fé cega e o sonho,
haviam ido também
os de olhos mais de luz
Muito mais tarde havia eu de ouvir
que esses de olhos de luz
pertenciam aos que não tinham nunca
lutado pelo pão ou uma terra sua,
e que ser de mais luz, de ter mais sonhos,
vive na proporção das moedas
que povoam os bolsos
Não me viam, os seus olhos cegos,
entre o ardor e o rugir da batalha
E eu soube sempre,
mesmo quando era só água em finíssimos átomos ,
espalhada pelo céu e rente ao mar,
que ser tão poderoso ou menos poderoso:
uma deslocação de ar
sem peso que contasse
Nunca o vi, a ele,
antes de me ver eu feito nevoeiro,
e ele continua a ser-me
leve sombra sem corpo
Formei-me a partir de uma península,
e fui avançando devagar,
cobrindo tudo,
ano após ano,
século após século,
com ele atravessando-me o corpo,
o seu corpo e o meu sem formas definidas
Se ele não existisse,
Ele não existia,
e ainda hoje, de vez em quando,
se ouve dele falar,
com outras formas, outros nomes,
um ser vindo de outras paragens
Era preciso o brilho de um farol
de linhas sólidas e unidas
para que eu desaparecesse
para sempre do mito
Mas o farol não há,
e eu habito entre tempos,
aprisionado a elipses de tempo,
e a ele:
os dois presos à história
Se ao menos esse galgo que ele amava
nos guiasse, por fim,
como fio ou farol,
para dentro do tempo
E eu voltasse a ser nuvem,
e ele, só imagens –
_
▪ Ana Luísa Amaral
( Portugal 🇵🇹 )
in “Escuro”, Assirio & Alvim, Lisboa, 2014