NÚBIO INVERNO DE LÁGRIMAS

Noite violácea e chuvosa.
Chove – as gotas, grossas e pesadas – sem cessar.
Os vidros do quarto estão todos embaciados.
O exílio interior é o nosso refúgio.
Fugimos com medos, passamos a percorrer labirintos.
Cá dentro, o frio em mil pedaços.
Chove.
Chove.
A criança que abusaste, num esconderijo,
nunca a tiveste, Padre.
Chove.
Chove.

Não conheço justiça que te liberte.

 


▪ Maria Azenha
( Portugal 🇵🇹 )
in “A Casa da Memória”

 

INSTANTE

 

INSTANTE

Uma boneca sem cabeça
ao colo de uma criança morta
entre destroços

uma aranha
em
seus cabelos

não há perguntas nem respostas

 
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▪ Maria Azenha
( Portugal 🇵🇹 )
in “A Casa da Memória”
— inédito —

 

MOMENT

A doll with no head
lolling in a dead child’s lap
among the wreckage

a spider
in
her hair

nothing to ask or to answer

 

_
▪ Maria Azenha
( Portugal 🇵🇹 )
in “The House of Remembrance
— unpublished —

 Translation by Lesley Saunders 🇬🇧 Poet and educationalist 

 

CINZAS EM FLOR

Uma rosa nasceu de um ninho de espinhos.
Enquanto ela chora de pétalas fechadas,
atravessa a luz mais alva das margens.

Ela é a aurora do espelho das águas:
Dá o corpo lunar aos mortos do mar.

E sem a colher, de asas imensas,
a Noite desabrocha num espelho em flor.

 

_
▪ Maria Azenha
( Portugal 🇵🇹 )
in “A casa da Memória”

PARA O NELSON, QUE NUNCA LERÁ ESTE POEMA

Alto, esguio, talvez uns trinta anos,
completamente cego,
resiste à indiferença das ruas.
Agora, acompanhado por um jovem,
caminha neste mundo sombrio.

A minha voz,
saída dos escombros de uma guerra fria,
ouviu-se desolada e triste:
bom dia.

Passámos alguns segundos quietos
a ouvir o som um do outro.

Quem éramos afinal neste encontro?
Que armas trazíamos?
Quem era o que matava e o que foi morto?

-pouco mais haveria a dizer –

Ouviu-se, no fim da rua :
Adeus! Até à próxima.

Um cão – de um castanho escuro –
parecia não se importar muito.

_

▪ Maria Azenha
( Portugal 🇵🇹 )
in ” A casa da memória”