Era uma desbragada comédia:
o pai oferecia caixas de chocolates
e a empregada de limpeza comia-os –
pensava-se que era uma oferta de amor,
mas ela ensinou-me que os presentes dos homens
servem para envaidecer o paladar da solidão
também eu os comi como se fossem para mim:
os doces cariavam as bonecas de porcelana
e doíam-me os seus olhos azuis de imobilidade
queria que sorrissem a minha boca suja
com as palavras que havia aprendido
quando encontrei os seus vestidos despenhados
num grande acidente doméstico, num grande
fim de aparelhos de cozinha que se avariavam
consoante o tempo passavam à espera de uma carta
foi assim que aprendi a limpar o silêncio,
à espera do tom certo para começar poemas
sobre essas vis atividades em que as mulheres
se despedem para continuarem a engrandecer as lides,
como se pudessem dizer adeus enquanto aquecem a panela:
e na mesa onde cabem muitos filhos genéticos
tiram-se os lugares suficientes para que o útero,
respire especiarias, um pouco de farinha branca
com que um dia fará as vezes de uma mãe a sós
e quando os créditos do filme passarem sob a sombra,
só a empregada se rirá do derradeiro presente:
o estômago estava cheio de um amor que não lhe era dedicado.
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▪ Lígia Reys
( Portugal 🇵🇹 )