“Nós vemos o mundo uma única vez, na infância.
O resto é memória”
Louise Glück
O menino estava a brincar na neve
Passei por ali com uma lâmina de gelo
na mão
escrevendo poemas no ar
O que estás a fazer? perguntou-me o menino
que brincava na neve
Escrevo poemas no ar
não vês?
Sim, vejo
mas isso vai gelar-te a mão
disse-me o menino que estava a brincar na neve
_
▪ Pentti Saariskoski
(Finlândia 🇫🇮)
Entre
as habilidades perigosas,
a capacidade de encontrar amigos
_
▪ Abbas Kiarostami
(Irão 🇮🇷 )
Traduzido do Persa por Karim Emami e Michael Beard
Queria que me acompanhasses
vida fora
como uma vela
que me descobrisse o mundo
mas situo-me no lado incerto
onde bate o vento
e só te posso ensinar
nomes de árvores
cujo fruto se colhe numa próxima estação
por onde os comboios estendem
silvos aflitos
_
▪ Ana Paula Inácio
( Portugal 🇵🇹 )
In “Poetas sem qualidades”, Edições Averno, 2002
Era uma vez uma bandeira que tinha um buraco.
O buraco estava no centro da bandeira.
O vento, quando queria, enfiava a mão no buraco e ia-se embora.
A bandeira chorava de cada vez que isto acontecia.
Então o vento que se chamava umas vezes VENTO, outras DIABO, não
tinha mãos, nem olhos, nem pés para andar, e dizia que estava sempre a caminho de casa.
Um dia, a bandeira, desesperada, pegou numa tesoura e cortou-se aos
bocados.
Esta foi a sua última vontade.
–
▪ Maria Azenha
( Portugal 🇵🇹 )
in ” Livro do Absurdo”
Pela janela vem o cheiro da manhã, da relva
e das rosas salpicadas de fresco que se casam com o cheiro
dos lençóis sonolentos. Ao bater a porta já só sinto
o meu perfume, o que pomos por cima das certezas
e das duvidas, por cima dos segredos que trespassam a pele.
Em breve me confundirei com o cheiro dos outros,
—————————————————— ——–daquele homem
vergado pelo saco das batatas, da florista a compor as
—————————————————– ————–margaridas,
da peixeira à porta da vizinha mostrando as goelas
—————————————————- ————— sangrentas
(talvez porque se tenha levantado cedo e apregoar assim
fere a garganta), das crianças a caminho da escola, de todos
os que hão-de cruzar o meu dia e de ti que hás-de cruzar
também a minha noite. Contar-te-ei todas as horas com
——————————————————– ————-a mistura
dos aromas que me compõem e ouvirei na tua pele
a subtil diferença entre os dias. Amanhã fecharemos a porta
e o teu cheiro irá entranhado em mim até a uma
——————————————————– —–distância infinita
das rosas que cantam à janela e seguirei pela estrada
estendendo a pele às dádivas do dia.
_
▪ Rosa Alice Branco
( Portugal 🇵🇹 )
In “Das Tripas Ao Coração”, Campo das Letras, Porto
O poema doía
porque queria nascer.
Agora
já não está cá dentro.
Sanguinolento
já me resvala
rápido-lento.
Parteira dele
dele me aparto deixo-o partir
ao sol da lua
ao ar do vento.
Agora é ele
já não sou eu.
Já não me dói. (Só me doeu)
_
▪ Ana Goês
( Portugal 🇵🇹 )
in “Queria dizer palavras“
Deverá estar ligado para publicar um comentário.