POEMA DE AMOR

Há algo sempre a ser feito de dor.
A tua mãe faz malha.
Produz cachecóis em todos os tons de vermelho.
Eram para o Natal e aqueciam-te
enquanto ela se fartava de casar, levando-te
consigo. Como podia resultar
quando, naqueles anos todos, ela arrecadou o seu
____________________________[coração viúvo
como se os mortos voltassem.
Não surpreende que sejas como és,
com medo do sangue, parecendo as tuas mulheres
uma parede de tijolos após outra.

 

_
▪ Louise Glück
( E.U.A. 🇺🇲 )
in “Descending Figure”, Ecco Press, Nova Iorque York, 1980

*

Mudado para português por _ Francisco José Craveiro de Carvalho 🇵🇹  Poeta, Tradutor e Matemático


LOVE POEM

 

There is always something to be made of pain.
Your mother knits.
She turns out scarves in every shade of red.
They were for Christmas, and they kept you warm
while she married over and over, taking you
along. How could it work,
when all those years she stored her widowed heart
as though the dead come back.
No wonder you are the way you are,
afraid of blood, your women
like one brick wall after another.

 

_
▪ Louise Glück
( U.S.A. 🇺🇲 )
From “Descending Figure”, Ecco Press, New York, 1980

 

RECORDAÇÃO MAIS ANTIGA

Há muito tempo, eu estava magoada. Vivia
para me vingar
do meu pai, não
pelo que ele era—
por aquilo que eu era: desde o início,
na infância, pensava
que a dor indicava
que não me amavam.
Indicava que eu amava.

 

_
▪ Louise Glück
( E.U.A. 🇺🇲 )
in “Ararat”, Ecco Press, Nova Iorque, 1990

*

Mudado para português por _ Francisco José Craveiro de Carvalho 🇵🇹  Poeta, Tradutor e Matemático



FIRST MEMORY

 

Long ago, I was wounded. I lived
to revenge myself
against my father, not
for what he was—
for what I was: from the beginning of time,
in childhood, I thought
that pain meant
I was not loved.
It meant I loved.

 

_
▪ Louise Glück
( U.S.A. 🇺🇲 )
From “Ararat”, Ecco Press, New York, 1990

 

░ Paisagem

O tempo passou, transformou tudo em gelo.
Sob o gelo, o futuro bulia.
Se caísses lá dentro, morrias.

Era um tempo
de espera, de acção suspensa.

Eu vivia no presente, que era
a parte do futuro que podíamos ver.
O passado pairava sobre a minha cabeça,
como o sol e a lua, visível mas inalcançável.

Era um tempo
governado por contradições, como
Não sentia nada e
tinha medo.

O inverno esvaziou as árvores, voltou a enchê-las de neve.
Como eu nada sentisse, a neve caiu, o lago gelou.
Como se eu tivesse medo, permaneci imóvel;
o meu bafo era branco, uma descrição do silêncio.

O tempo passou, e uma parte dele tornou-se isto.
E outra parte evaporou-se simplesmente;
podíamos vê-la a pairar sobre as árvores brancas,
formava partículas de gelo.

Esperas a vida inteira pelo momento oportuno.
Depois o momento oportuno
revela-se acção consumada.

Eu via mover-se o passado, uma fila de nuvens a avançar
da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda,
consoante o vento. Por vezes

não havia vento. As nuvens pareciam
ficar onde estavam,
como uma pintura do mar, mais imóveis do que reais.

Por vezes o lago era um lençol de vidro.
Sob o vidro, o futuro murmurava,
modesto, convidativo:
tinhas de te concentrar para o não ouvires.

O tempo passou; chegaste a ver parte dele.
Os anos que levou eram anos de inverno;
ninguém lhes sentiria a falta. Por vezes

não havia nuvens, como se
as fontes do passado tivessem desaparecido. O mundo

perdera a cor, como um negativo; a luz atravessava-o
de lado a lado. Depois
a imagem apagava-se.

Por cima do mundo
só havia azul, azul em toda a parte.

 

 
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▪ Louise Glück
(EUA 🇺🇲 )
Tradução – Rui Pires Cabral
in “Telhados de vidro” nº. 12, Editora Averno, Lisboa, 2009

 
 

░ Poema

Ao início da noite, como agora, um homem está curvado
sobre a sua secretária. Lentamente ergue a cabeça; uma mulher
surge, trazendo rosas.
O seu rosto flutua até à superfície do espelho,
marcado pelos raios verdes dos pés das rosas.

É uma forma
de sofrimento: depois a página transparente
levada sempre à janela até as suas veias aparecerem
como palavras por fim cheias de tinta.

E é minha obrigação compreender
o que as une
ou à casa cinzenta mantida no sítio com firmeza pelo crepúsculo

porque eu devo entrar nas suas vidas:
é primavera, a pereira
a cobrir-se com uma fina camada de flores brancas e frágeis.

 

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▪ Louise Glück
(EUA, n. 1943)
in “Poems 1962-2012”, Editora Farrar, Straus and Giroux, First Edition, USA, 2012

Mudado para português por _ Francisco José Craveiro de Carvalho _ (Poeta, Tradutor e Matemático)



ORIGINAL VERSION / VERSÃO ORIGINAL

 

░  Poem

In the early evening, as now, a man is bending
over his writing table.
Slowly he lifts his head; a woman
appears, carrying roses.
Her face floats to the surface of the mirror,
marked with the green spokes of rose stems.

It is a form
of suffering: then always the transparent page
raised to the window until its veins emerge
as words finally filled with ink.

And I am meant to understand
what binds them together
or to the gray house held firmly in place by dusk

because I must enter their lives:
it is spring, the pear tree
filming with weak, white blossoms.

 

_
▪ Louise Glück
(USA, b. 1943)
From “Poems 1962-2012”, Farrar, Straus and Giroux, First Edition, USA, 2012

 

░ Adormeci num rio

Adormeci num rio, acordei num rio,
da minha misteriosa
incapacidade de morrer nada sei
dizer-te, nem
de quem me salvou ou por que razão –

Havia um silêncio imenso.
Nenhum vento. Nenhum som humano.
O século amargo

tinha chegado ao fim,
o glorioso, o duradouro,

o sol frio
persistia como uma antiqualha, um memento,
com o tempo a correr por detrás –

O céu parecia muito límpido,
como no inverno,
o solo seco, inculto,

a luz oficial atravessava
calmamente uma fresta no ar

digna, complacente,
desfazia a esperança,
subordinava imagens do futuro aos sinais da passagem do futuro –

Julgo que caí.
Só à força pude tentar levantar-me,
tão estranha me era a dor física –

Tinha esquecido
a dureza destas condições:

a terra, não obsoleta,
mas quieta, o rio frio, pouco profundo –

Do meu sono não recordo
nada. Quando gritei,
a minha voz trouxe-me um inesperado consolo.

No silêncio da consciência, perguntei-me:
porque rejeitei a minha vida? E respondi
Die Erde überwältigt mich:
a terra derrota-me.

Tentei ser exacta nesta descrição,
para o caso de alguém me seguir. Posso garantir
que o pôr-do-sol no inverno é
incomparavelmente belo e a memória dele
dura muito tempo. Julgo que isto significa

que não havia noite.
A noite estava dentro de mim.

 

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▪ Louise Glück
(E.U.A., n. 1943)
in “Telhados de Vidro”, nº. 12, Averno, Lisboa, 2009
Tradução – Rui Pires Cabral