A fotografia da minha mãe no seu escritório dos anos 50
anda na minha carteira há vinte anos,
o papel acastanhado foi desbotando
e a borda recortada enrolou-se, depois endireitou-se.
A gola do vestido está discretamente cruzada.
Poderíamos supor que a chamam de longe,
dado o ângulo que o pescoço toma.
Era a primeira da família a apanhar
o autocarro de Claremont
que sobe a colina até à universidade.
A certa altura, durante as aulas na escola de medicina,
os estudantes negros tinham de arrumar as suas coisas
e de abandonar o anfiteatro, caminhando ao longo das filas de carteiras.
Atrás da porta fechada, decorria uma autópsia
e os estudantes negros não deviam ver
a pele branca exposta e cortada.
Sob a faca, sob a pele,
mistério da semelhança
num mundo que definia o modo como preto e branco
podiam olhar-se mutuamente, tocar-se,
a minha mãe olha para trás com uma desenvoltura intacta.
Cada vez que abro a carteira,
lá está ela, tão familiar que me esqueço
de olhar.
–
▪ Gabeba Baderoo
(🇿🇦 África do Sul)
Mudado para português por _ Soledade Santos _ a partir da versão francesa