O Amor

Se chovesse (sempre) trezentos e sessenta e cinco dias por ano,
e as nuvens no céu se repetissem na cor,
na forma, na velocidade, e na lentidão;
e se o sol permanecesse robusto e alto, constante
como o último andar de um edifício (bem construído),
de calor assim assim mas repetindo assim assim
de calor da véspera;
se o mau e o bom tempo fossem uma linha única,
paralela aos dias; se o verão e o inverno
em vez de dois fossem um,
como uma pedra é um, e uma árvore é um,
se, enfim, quem amas permanecesse amado por ti,
hoje exactamente como ontem,
e daqui a trinta anos exactamente como hoje;
então não existiria o tempo,
e os relógios de pulso seriam pulseiras ruidosas,
mecânicas de mais para estarem tão próximas da mão
capaz de tocar com leveza.
E se não há tempo
_____________não podemos trair.

 

 

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▪ Gonçalo M. Tavares
( Portugal 🇵🇹 )

Breves notas sobre literatura-Bloom

ACUMULAR-  Não se devem acumular informações ou episódios narrativos. O que se acumula são perplexidades.
A literatura exige especialistas em mistérios.Mas não mistérios de detectives, com um fim determinado: o assassino é descoberto. Trata-se (na literatura) de um especialista que estuda o mistério, aumentando-o. Estudar o mistério é aumentar o mistério, não é diminuí-lo. De certa maneira, a análise literária-Bloom é também isto: não diminuir as perplexidades, aumentá-las.
No final de um texto-Bloom, ou mesmo no final de uma frase- Bloom, o leitor deve não-saber mais factos do que não-sabia antes.
Este, porém, não é um método para aumentar a ignorância, mas um método para aumentar a curiosidade.
Acumular é,pois,diminuir,tornar mais raro.

 

▪ Gonçalo M. Tavares
( Portugal 🇵🇹 )
In “ Breves Notas sobre Literatura-Bloom”

PALAVRAS, ACTOS

A ironia ensina a sabotar uma frase
como se faz a um motor de automóvel:
Se retirares uma peça a máquina não anda, se mexeres
no verbo ou numa letra do substantivo,
a frase trágica torna-se divertida,
e a divertida, trágica.
Este quase instinto de rasteirar as frases protegeu-me,
desde novo, daquilo que ainda hoje receio: transformar
a linguagem num Deus que salve, e cada frase num anjo
portador da verdade. Tirar seriedade ao acto da escrita
aprendi-o na infância, tirar seriedade aos actos da vida
comecei a aprender apenas depois de sair dela, e espero
envelhecer aperfeiçoando esta desilusão.

 

▪ Gonçalo M. Tavares
( Portugal 🇵🇹 )