PASSEPARTOUT

estou aqui no mundo
acho eu, está nos registos
e acho que isso
não tem dúvida,
tanto para filósofos
idealistas como
realistas,
embora ambos
levantem dúvidas
acerca do que afirmam os registos
pois para uns
as palavras afirmam coisas e
nem sempre as coisas
que afirmam
confirmam as palavras
que as afirmam e,
para os outros é o contrário.
isso já se sabe,
mas a palavra estou
afirma tudo isso
ao mesmo tempo
e não é de há pouco,
afirma que estou lá
horas e horas, dias e dias, e até
meses, centenas e centenas
de meses, milhares acho que não
mas não tenho a certeza,
a matemática
é que ainda assim
ajuda a esclarecer:
dois caracóis
e dois ramos de salsa
são quatro,
mais dois alhos
são seis,
mas isso é na panela,
a magia está
nela, porque
passada meia hora
aliás vinte e tal minutos
— gosto de ser exacto —
já são outra vez
só dois, e depois
nem é nenhum,
porque a casca não conta;
volta a ser qualquer coisa
passadas horas mas não sei
se conta, nem quantos são.
mas fora a culinária,
hoje a matemática
é precisa para tudo,
não se faz nada sem ela,
nem sequer sexo: quantas são e
quais as variantes? só com algoritmo,
o simples ritmo claro que já não conta.
as excepções, além da culinária,
são só duas: apostas
na banca e no banco,
banco de futebol, claro: estas
é melhor na lua cheia,
na banca é melhor na nova,
já não pode haver mais perdas.
lua nova lua cheia
cinquenta por cento de cada,
mas com os quartos vazios, e depois
os repetidos carimbos
doze por cento por dia parece que é certo
mas pode ser mais pode ser menos,
pode-se ganhar um, pode-se perder outro,
e perto disso por dia,
mais tanto por noite,
depende dos marcados,
note-se bem!
nota-se e anota-se bem,
é a lua e a banca,
sobe, desce,
cresce mingua
daqui para ali
e depois para trás
e
de novo para a frente:
é o tempo que passa,
dito melhor passeia,
a matemática conta,
passa tempo passo eu no tempo
mas estou, fico
e pássaro (lindo jogo
tema tico-tico)

diz ela:
conhece Kirkegaard?

eu pergunto:
em que clube joga?

 

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▪ Alberto Pimenta
( Portugal 🇵🇹 )
in “Zombo”, Edições do Saguão, Lisboa, 2019

MENTALIDADE ou

aqui estou!, disseste

depois de eu ter feito
a pergunta ordinária: está lá?
estavas a falar da Marmeleira,
“aqui”, disseste
em vez do nome da terra, questão
só de mentalidade, porque
Marmeleira é um nome
como outro qualquer,
conheço muitos assim,
não precisa de ser com árvores,
nem sequer de fruto…
olha os Carvalhos, por exemplo,
e há mais! Enfim, tu viajas, sabes,
enquanto eu é o que se sabe;
eu vou só daqui para ali
e vice-versa…
e vice-versa, é claro,
porque ali é só para me lavar
e o resto… tem piada
porque primeiro o que escrevi li
rosto, mas o rosto já está,
claro que é o resto , está certo,
nenhum autor do meu conhecimento
em vez de resto escreveria cagar;
eles nem conhecem a palavra,
nunca a ouviram, ou se ouviram
pensaram que era uma “plataforma”
para outra coisa, talvez simplificação
de carregar, há autoclismos assim.
Voltaire, o maganão, dizia
também que não dizia, não precisava,
bom proveito lhe faça,
mas há quanto tempo foi isso?
é tudo mentalidade, ou não será
mental idade, pois passaram séculos,
houve muita coisa de cima para baixo:
o pudim, por exemplo, foi na cozinha,
a cozinha, centro de luculações e
lucubrações, na tua preparas tu
o teu ensopado, enquanto eu na panela
mexo a minha sopa de pacote, e assim
se vão passando os dias,
e de noite não se come. é a natureza,
“de noite comem os animais nocturnos”,
é uma das grandes observações
da revista científica, embora como tudo
tenha excepções: as excepções
às vezes são só uma questão
de mentalidade, mas outras não.
não foi na Marmeleira, também
dizes “vou entrar” quando
estás a entrar para o metro,
mas sempre que vais a sair
nunca dizes nada. mentalidade,
excepção? é mas é
um notável ponto de partida
para iniciar a filosofia
de que já te falei, lembras-te?,
segundo a qual embora o meu de transporte
seja o mesmo, e as mesmas pessoas
as implicadas, os dois actos
de entrar e sair, aproximação e afastamento,
têm um sentido tão apartado e — cuidado! —
parece mas não é sempre apertado,
pois num caso o “saio aqui” aproxima,
mesmo que a estação fique muito
distante, e o silêncio à saída afasta,
mesmo que a estação fique junto
à minha casa! mas a reflexão vai
por água abaixo (em caso de chuva)
porque junto à minha casa, é notável ,
não há nada. desse nada podia nascer
uma estação e um mundo de bilhetes,
e de turistas, claro, era onde eu queria chegar:
o tema é a mentalidade, não é?
é mesmo mentalidade há muito chula,
desde as especiarias, escravos, esbulhos
de muita espécie, sempre um esquema ,
e do pior, e dura, dura, dura,
sim, muito dura para os (e eis o x da questão)
expostos, os postos fora de sua casa.

 

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▪ Alberto Pimenta
( Portugal 🇵🇹 )
in “Zombo”, Edições do Saguão, Lisboa, 2019