A beleza é difícil.
Queria ensaiar uma magia menor
com a consciência de que cada homem tem a sua porção de paraíso
mesmo nos lugares mais adversos.
Mas a minha adversidade é uma paisagem
povoada de medos e de cinzas.
Vejo morte e sofrimento lá longe
e o que me comove está mais perto e é inapreensível.
Penso naquele pátio medieval de uma aldeia da Beira Interior
onde ontem assisti ao prelúdio de uma noite de verão.
O poço negro dos céus. A hera baloiçando ao vento. O cortejo das estrelas.
Um rumor de insectos roendo os interstícios do silêncio.
Poderia enumerar todas as coisas que então preencheram os meus sentidos
e reduzir essa expressão de coisas que desfilam, recebem nomes,
a um falhanço sem limites.
Retomo a pedra fria em que estive sentado naquela noite.
Toco-a com o pensamento até à falaz eloquência da realidade.
Falhar é seguir, novamente, a estrada da atrocidade quotidiana.
Penso em Ungaretti nas trincheiras
recordando os seus rios: o Isonzo, o Nilo, etc.
Há uma fuga nesta indiferença.
São nobres os exemplos
e exemplar a responsabilidade do alheamento.
Vejo um campo devastado dentro de mim,
a torre da Canção erguendo-se sobre as ruínas da tranquilidade
que me cerca.
A beleza é difícil.
Procuro a noite e a solidão num pátio medieval.
Procuro na minha memória esta noite e essa solidão.
É preciso salvar o momento, penso.
E distante no tempo, um outro o salva:
um poeta nomeia os seus rios
numa frente de combate.
A morte envolve-o. Porém, ele assume a ventura da beleza.
Assina o seu rosto junto ao sofrimento.
Com o início desse conhecimento
escrevo: «A beleza é difícil. Pode derrubar-nos, entretanto.»
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▪ Luís Quintais
(Angola, n. 1968)
in “A Imprecisa Melancolia”, Editorial Teorema, Lisboa, 1995