Alfarrabista

Hoje comprei um livro de Raul de Carvalho
por um euro, o que considero um escândalo!
Os poetas, regra geral, sempre foram pobres,
mas a sua poesia vale muito mais do que
o peso de mil resmas de rouxinol em oiro.
Isto, evidentemente, pouca gente sabe.
Se muita gente soubesse
os poetas seriam todos ricos.

 

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▪ António Barahona
(Lisboa, n. 1939)
in Revista “Telhados de Vidro”, nº.12, 2009

NESTE SILÊNCIO

Neste silêncio oculto onde as tuas mãos se deslumbram a cada movimento, subsistimos com o peso do crepúsculo e a miséria da guerra.

Inútil a nossa vida, inútil a vida dos outros, quando o amor é um pássaro dentro duma gaiola no deserto. Inútil toda a simbologia funcional das imagens, porque ao homem é dado o sonho com o sentido das coisas.

De bruços sobre a areia, descanso as pálpebras no mar. A minha ociosidade é um peixe de prata adormecido nas ondas, um barco sem dono ancorado na doca. E hei-de morrer assim contigo, companheira ou ilusão do meu cansaço, porque a verdade que trouxemos é um trapézio vazio num circo em ruínas, uma flor no trapézio e muitos gatos a assistir até ao dia nunca mais do horizonte livre.

 

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▪ António Barahona
( Portugal 🇵🇹 )
in “Poemas e Pedras”, Ed. Autor, Lisboa, 1962

UMA FONTE DE SANGUE

Abri as veias para sangrar o engenho.

*

A prosa tornou-se necessária aos versos.

*

A harmonia tosca desfaz-se
como um fato no fio
mais de acordo com o Apocalipse.

*

Um homem de pé
sobre as nuvens
pisa um solo ensanguentado.

 

7.III.07

 

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▪ António Barahona
( Portugal 🇵🇹 )
in “Telhados de Vidro”, n. 12, Editora Averno, 2009

░ DECISÕES GRAVES

Rasgar fotografias
com desgosto
ritual, meticuloso na destruição
como Antero de Quental.

Escrever, por não querer dizer,
ansioso de calar-me, de
caiar-me uma noite
iluminado luto,
canção da ponte admirável
quando eu era um rio a correr
ao teu encontro.

A realidade não dá descanso a ninguém
acordado; e muito menos ao poeta
que dorme bem desperto, a sono preso
ao sonho e para além do sonho
adensado em tumulto de mistério.

Desligar as estrofes, experimentar ignorar
com consciência: sair para poder entrar
por outra porta. Há uma infinidade de portas.
Muito poucas estão abertas.

 

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▪ António Barahona
(Lisboa, n. 1939)
in “Raspar o Fundo da Gaveta e Enfunar uma Gávea”, Averno, Lisboa, 2011

Poétique de la transcréation

Transcréer : décalquer jusqu’à l’os
tout le corps du poème bien-aimé
jusqu’au plus profond de son esprit
caché en chaque écho que j’épelle

Transporter le poème et son poids,
toutes ses plumes de jaspe bien sculpté,
dormir à son coté quelque part
du sommeil jusqu’au son éveillé

Réécrire mil fois le même vers
De rime pauvre, riche univers
en noble mélopée rituelle

Reprendre mil fois le spontané
vers, offert par Dieu et raturé
jusqu’à faire des trous sur le papier.

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▪ António Barahona
(Lisboa, n. 1939)
in “Pássaro-Lyra”, Editora Averno, Lisboa, 2015

Mudado do português por Eduardo Veras, pesquisador colaborador e pós-doutorando na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) – Brasil, onde atuou em 2016 como professor de Literatura Francesa. Especialista na obra de Charles Baudelaire, sobre quem escreveu tese de doutorado (UFMG, 2013), realizou dois estágios de pesquisa no “Centre de Recherche sur la Littérature Française du XIXe Siècle” da Université Paris-Sorbonne, sob a supervisão do professor Dr. André Guyaux. Atualmente, prepara uma nova tradução dos poemas em prosa de Baudelaire, de quem já traduzira o ensaio “L’École Païenne”. É autor de “O oratório poético de Alphonsus de Guimaraens” (Relicário, 2016) e co-organizador da coletânea de ensaios “Por uma literatura pensante: ensaios de filosofia e literatura” (Fino Traço, 2012). Tem publicado artigos sobre diversos poetas, brasileiros e franceses, em periódicos especializados.



VERSÃO ORIGINAL

░  POÉTICA DA TRANSCRIAÇÃO

 

Transcriar: decalcar até ao osso
o corpo do poema bem-amado,
até ao mais profundo do seu espírito
oculto em cada eco que soletro

Transportar o poema com seu pêso,
suas plumas de jaspe bem esculpido,
dormir com ele ao lado em qualquer sítio
até tornar o sono em som desperto

Reescrever mil vezes o mesmo verso
De rima pobre, rico d’universo
em nobre melopeia ritual

Recuperar mil vezes o espontâneo
verso, dado por Deus e rasurado
até fazer buracos no papel

 

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▪ António Barahona
(Lisboa, n. 1939)
in “Pássaro-Lyra”, Editora Averno, Lisboa, 2015

░ Orientation

J’ai écrit des milliers de vers
pour oublier. J’ai embrassé quelques femmes
pour me rappeler. Maintenant je peux déjà dire
le son à chair vive.

La ville ressemble à un camp
abandonné dans le désert. Les nomades
sont partis sur leurs chameaux, avec provision
de tamars et d’eau.
Il y a des restes de déchets, panneaux de signalisation
feuilles arrachées à des revues pornographiques,
au gré du vent, parmi des pétales sèches.

Il y a des résidus d’endroits où j’ai été avec toi
fragments de vers en verre, tout
très net, inscrit, plié en or.

 

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▪ António Barahona
(Lisboa, n. 1939)
in “O Som do Sôpro”, Edição Livraria Poesia Incompleta, Lisboa, 2011

Mudado do português por Eduardo Veras, pesquisador colaborador e pós-doutorando na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) – Brasil, onde atuou em 2016 como professor de Literatura Francesa. Especialista na obra de Charles Baudelaire, sobre quem escreveu tese de doutorado (UFMG, 2013), realizou dois estágios de pesquisa no “Centre de Recherche sur la Littérature Française du XIXe Siècle” da Université Paris-Sorbonne, sob a supervisão do professor Dr. André Guyaux. Atualmente, prepara uma nova tradução dos poemas em prosa de Baudelaire, de quem já traduzira o ensaio “L’École Païenne”. É autor de “O oratório poético de Alphonsus de Guimaraens” (Relicário, 2016) e co-organizador da coletânea de ensaios “Por uma literatura pensante: ensaios de filosofia e literatura” (Fino Traço, 2012). Tem publicado artigos sobre diversos poetas, brasileiros e franceses, em periódicos especializados.



VERSÃO ORIGINAL

 

Orientação

 

Escrevi milhares de versos
para esquecer. Amei algumas mulheres
para lembrar. Agora já posso dizer
o som em carne viva.

A cidade assemelha-se a um acampamento
abandonado no deserto. Os nómadas
partiram nos seus camelos, com provisão
de tâmaras e água.
Há restos de detritos, sinais de trânsito,
folhas arrancadas a revistas pornográficas,
ao sabor do vento, por entre pétalas sêcas.

Há resíduos de sítios onde estive contigo,
fragmentos de versos de vidro, tudo
muito nítido, anotado, vincado a oiro.

 

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▪ António Barahona
(Lisboa, n. 1939)
in “O Som do Sôpro”, Edição Livraria Poesia Incompleta, Lisboa, 2011

░ Memória de Antonin Artaud

Não me reconheço entre os homens
porque são eles os demolidores do meu pensamento

Não participo desta razão comum de existir
porque luto dia a dia com sons e signos ocultos
para a invenção doutra linguagem
que não descobrirei
— sei-o perfeitamente —
mas a necessidade de estar só
dentro de um universo opiado e infinito
obriga-me a estender os cabelos no exílio

 

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▪ António Barahona
(Lisboa, n. 1939)
in “Pássaro-Lyra”, Averno, Lisboa, 2015