Sobre a minha mãe

Não conseguiria nunca dizer nada sobre a minha mãe:
como ela repetia, vais arrepender-te um dia,
quando já cá não estiver e como eu não acreditava
nem no “não estiver” nem no “já não”,
como gostava de a observar quando lia os grandes êxitos,
começando sempre pelo último capítulo,
como na cozinha, convencida de que não era
lugar para ela, fazia o café dominical
ou, pior ainda, filetes de bacalhau,
como estudava o espelho enquanto esperava os convidados,
fazendo a cara que melhor a impedia
de se ver como era (nisto
e em mais umas tantas fraquezas saio a ela),
como falava demais sobre coisas
que não eram o seu forte e como eu estupidamente
a arreliava, por exemplo, quando
se comparava a Beethoven ao ficar surda
e eu dizia, cruelmente, mas sabes ele
era talentoso, como perdoava tudo,
como eu recordo isso e como, de Houston, fui de avião
ao seu funeral, fui incapaz de dizer uma palavra
e ainda hoje não consigo.

_
▪ Adam Zagajewski
( Polónia 🇵🇱 )
Mudado para português por _ Francisco José Craveiro de Carvalho

OS MEUS MESTRES

 

Os meus mestres não são infalíveis.
Não se trata de Goethe, que só conseguia
adormecer quando ao longe
gemiam os vulcões, nem de Horácio,
que escrevia na língua dos deuses
e dos sacerdotes. Os meus mestres
pedem-me conselhos. Vestindo macios
sobretudos deitados velozmente
por cima dos sonhos, ao romper dia, quando o vento
fresco interroga os pássaros, os meus
mestres falam por sussurros.
Consigo ouvir a sua voz trêmula. 

 

_
▪ Adam Zagajewski
( Polónia 🇵🇱 )
in “Sombras de sombras”, Tinta da China
Mudado para português por  Marco Bruno

MUDANÇA

Havia meses que não escrevia
nem um único poema.
Vivia com humildade, lendo os jornais,
pensando no enigma do poder
e nas causas da obediência.
Olhava para os pores-do-sol
(escarlates, cheios de inquietação),
escutava o emudecimento das vozes dos pássaros
e o silêncio da noite.
Via os girassóis a pendurarem
as cabeças ao lusco-fusco, como se um carrasco distraído
passeasse por entre os jardins.
No parapeito recolhia-se
a doce poeira de Setembro enquanto os lagartos
se escondiam nas curvaturas dos muros.
Dava longos passeios,
sedento duma coisa só:
dum relâmpago,
duma mudança,
de ti.

 

_
▪ Adam Zagajewski
( Polónia 🇵🇱 )
in “Sombras de sombras”, Selecção e Tradução de Marco Bruno 🇵🇹, Editora Tinta da China, Lisboa, 2017

░ Blake

Observo William Blake, que descobria anjos
nas copas das árvores todos os dias,
encontrou Deus nas escadas
da sua pequena casa e via luz em vielas sujas —
Blake que morreu cantando alegremente
numa Londres apinhada
de prostitutas, almirantes e milagres,
William Blake, gravador, que trabalhou
e viveu na pobreza mas não em desespero,
que recebeu sinais ardentes
do mar e do céu estrelado,
que nunca perdeu a esperança, pois a esperança
renascia sempre como a respiração,
vejo os que como ele caminharam por ruas sombrias,
na direcção da orquídea rósea da madrugada.

 

_
▪ Adam Zagajewski
(Polónia, n. 1945)
in “Eternal Enemies”, Editora Farrar, Straus and Giroux, EUA, 2008

Mudado para português por _ Francisco José Craveiro de Carvalho _ (Poeta, Tradutor e Matemático) a partir da versão para inglês de Clare Cavanagh



ORIGINAL VERSION / VERSÃO ORIGINAL

 

Blake

 

I watch William Blake, who spotted angels
every day in treetops
and met God on the staircase
of his little house and found light in grimy alleys—
Blake, who died
singing gleefully
in a London thronged
with streetwalkers, admirals, and miracles,
William Blake, engraver, who labored
and lived in poverty but not despair,
who received burning signs
from the sea and from the starry sky,
who never lost hope, since hope
was always born anew like breath,
I see those who walked like him on graying streets,
headed toward the dawn’s rosy orchid.

 

_
▪ Adam Zagajewski
(Poland, b. 1945)
From “Eternal Enemies”, Published by Farrar, Straus and Giroux, USA, 2008
Translated, from the Polish, by Clare Cavanagh

░ Violoncelo

Quem não gosta dele diz que é
apenas uma mutação do violino
que foi corrida do coro.
Não é assim.
O violoncelo tem imensos segredos,
mas nunca soluça,
canta apenas na sua voz baixa.
Nem tudo se transforma numa canção,
porém. Às vezes apanhamos
um murmúrio ou um sussurro:
sinto-me sozinho,
não consigo dormir.

 

_
▪ Adam Zagajewski
(Polónia, n. 1945)
in “Without End: New and Selected Poems”, Editora Farrar, Straus and Giroux, EUA, 2002

Mudado para português por _ Francisco José Craveiro de Carvalho _ (Poeta, Tradutor e Matemático) a partir da versão para inglês de Clare Cavanagh



ORIGINAL VERSION / VERSÃO ORIGINAL

 

░  Cello

 

Those who don’t like it say it’s
just a mutant violin
that’s been kicked out of the chorus.
Not so.
The cello has many secrets,
but it never sobs,
just sings in its low voice.
Not everything turns into song
though. Sometimes you catch
a murmur or a whisper:
I’m lonely,
I can’t sleep

 

_
▪ Adam Zagajewski
(Poland, b. 1945)
From “Without End: New and Selected Poems”, Published by Farrar, Straus and Giroux, USA, 2002
Translated, from the Polish, by Clare Cavanagh

 

░ En Route

 

1- SEM BAGAGEM

….. Viajar sem bagagem, dormir no comboio
….. num banco de madeira duro,
….. esquecer a terra natal,
….. sair de pequenas estações
….. quando um céu cinzento se levanta
….. e os barcos de pesca se dirigem para o mar.

 

2- NA BÉLGICA

….. Na Bélgica chuviscava
….. e o rio serpenteava entre montes.
….. Sou tão imperfeito, pensei.
….. As árvores estavam nos campos
….. como padres de sotainas verdes.
….. Outubro escondia-se nas ervas.
….. Não, minha senhora, disse eu,
….. este é o compartimento de não faladores.

 

3- UM FALCÃO ÀS VOLTAS POR CIMA DA AUTO-ESTRADA

….. Ficará desapontado se se lançar
….. sobre uma placa de ferro, gasolina,
….. uma cassete de música rasca,
….. os nossos corações apertados.

 

4- MONT BLANC

….. De longe brilha, branco e cauteloso,
….. como uma lanterna para as sombras.

 

5- SEGESTA

….. No campo um vasto templo—
….. um animal selvagem
….. aberto ao céu.

 

6- VERÃO

….. O verão era gigantesco, triunfante—
….. e o nosso pequeno carro parecia perdido
….. na estrada para Verdun.

 

7- A ESTAÇÃO EM BYTOM

….. No túnel subterrâneo
….. crescem pontas de cigarro,
….. não malmequeres.
….. Tresanda a solidão.

 

8- REFORMADOS NUMA VIAGEM DE ESTUDO

….. Estão a aprender a andar
….. em terra.

 

9- GAIVOTAS

….. A eternidade não viaja,
….. a eternidade espera.
….. Num porto de pesca
….. só as gaivotas são faladoras.

 

10- O TEATRO EM TAORMINA

….. Do teatro em Taormina vê-se
….. a neve no cume do Etna
….. e o mar resplandecente.
….. Qual é o melhor actor?

 

11- UM GATO PRETO

….. Um gato preto sai para nos saudar
….. como a dizer olhem para mim
….. e não para uma velha igreja românica.
….. Eu estou vivo.

 

12- UMA IGREJA ROMÂNICA

….. No fundo do vale
….. uma igreja Românica em repouso:
….. há vinho neste barril.

 

13- LUZ

….. Luz nas paredes de casas velhas,
….. Junho.
….. Transeunte, abre os olhos.

 

14- DE MADRUGADA

….. A materialidade do mundo ao amanhecer –
….. e a fragilidade da alma.

 

_
▪ Adam Zagajewski
(Polónia, n. 1945)
in “Eternal Enemies”, published by Farrar, Straus and Giroux, New York, 2008

*

Mudado para português por Francisco José Craveiro de Carvalho (Poeta, Tradutor e Matemático) a partir da versão para inglês de Clare Cavanagh | (https://www.poetryfoundation.org/poems-and-poets/poems/detail/57094)