EM VÃO!

Em vão
_____assumirei a fome alheia como minha
_____(há mãos obscenas a ocultar o trigo)
Em vão
_____verei os olhos de meninos maiores que os seus ventres
_____(há mãos obscenas a roubar o trigo)
Em vão
_____Temerei as exactas máquinas da guerra
_____(há obscuras mãos a sequestrar a paz)
Em vão
_____Suportarei mal o sangue empapando o chão
_____(há obscuras mãos a estrangular a paz)
Em vão!
______Em vão!
____________Em vão!
__________________Mas que não digam que fui indiferente
__________________Que não me desesperei
__________________Que não morri mil mortes
__________________Que não paguei o tributo de ter sido
______________________________________homem.

 

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▪ Adalberto Alves
( Portugal 🇵🇹 )
in “Oriente de mim”, Editorial Teorema, Lisboa, 1993

░ UM CANTO PARA WHITMAN

do sofrimento,
————– eu fiz um canto.

da alegria,
———– —da luta,
do fracasso,
————- do amor,
————- e do sol e do luar,
eu fiz um canto.

da miséria toda desta vida,

—————da minha pequenez,
—————da minha imensidão,

da sede infinita de infinito,

———–das certezas que não tenho,
eu fiz um canto.

da minha compaixão,

————– de palavras mendigadas,
no firmamento, na terra,
————– nas montanhas e nos mares,
———- —-aos animais
e ás árvores,
—————-à chuva
às tempestades,
—————-eu fiz um canto.

da noite
—————e da madrugada,
da melodia
—————e do silêncio,
dos vivos
—————e até dos mortos,

e do meu jardim secreto,

—————-com aromas e sabores
e dos tormentos dos homens,

do aço das duas fábricas,

eu fiz um canto.

da loucura,
————– do meu corpo,
e da guerra que há na paz,

————–de toda a minha ternura,
da minha raiva,
————–e descrença,
————–e até da minha esperança,
eu fiz um canto.

de tudo o que em mim ferveu,
————-do humano,
ao desumano,
————-céu e inferno,
do mortal ao imortal,
————-do Nascente
e do Sul,
———— do Poente,
e do Norte,
———— eu fiz um canto.

da prostituta perdida,
—————– dos meus olhos mentirosos,
do tempo que nunca volta,
—————– do desespero dos sábios,
da inocência dos tontos,
—————- eu fiz um canto.

do silêncio
—————- e da palavra,
do secreto
—————- e do patente,
da liberdade,
—————- do escravo,
e do senhor, que é o mais servo,
—————- eu fiz um canto.

do fogo
—————- e das suas cinzas,
do sonho que me assombrou,
—————- do mistério que há em Tudo,
e do Nada transparente,
—————- eu fiz um canto.

esse canto se evolou,

—————- por cima da minha vida,
por cima da minha morte,
—————- fulminante como um raio
soando com um lamento,
—————- ardendo como um vulcão.

eu não sei quem o criou.

sei que voou de repente

e que depois, mansamente,

em meu coração pousou.

 

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▪ Adalberto Alves
(Lisboa, n. 1939)
in “Navegação imperfeita”, Editora Labirinto, Fafe, 2017

 

░ Os artistas do momento

ah, quanta da arte que agora se faz
é puro entulho: estilo baralha e volta a dar.
é só ter a compulsão de instalar
e ser um bom rapaz,
usando lixos convincentes,
e, mais do que barriga, ter bons dentes.
conquista-se espaço cultural de um jacto.
o que é preciso é ter um bom contacto.
e, o que mais interessa , pelo sim pelo não,
é aparecer na televisão.
na solene parada das vaidades,
desfila os eleitos e confrades,
qual deles o mais gabiru,
arrastando a sua instalação.

e o povoléu aplaude
e não vê que o rei vai nu.

 

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▪ Adalberto Alves
(Lisboa, n. 1939)
in “Os indícios da palavra”, Editora Althum.com, Lisboa, 2017

░ Pode ser, que o terrível não tenha explicação

Pode ser, que o terrível não tenha explicação
E que a luz seja só a presença de silêncio.
Pode ser.

Pode ser que letra a letra se construa
O veneno insuficiente da palavra
De todo já perdida para a vida.
Pode ser.

Pode ser que eu seja peixe fora d’água
Sufocado na areia tonta de uma praia
Pode ser.

Pode ser que eu não passe
De cometa sossobrante
Num buraco escura da galáxia.
Pode ser.

Mas o que será que agora,
Para quem julgue ver-me,
Pareço neste instante ?

 

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▪ Adalberto Alves
(Lisboa, n. 1939)
in “Os indícios da palavra”, Editora Althum.com, Lisboa, 2017