TRÊS POEMAS DE CHARLES SIMIC


A caixa de música

Senhoras e cavalheiros em linhas de retratos
Na sala de estar da tua casa da cidade,
Sobre uma pequena cruz e uma caixa de música
Que toca apenas silêncio nos dias de hoje
Para uma audiência de cadeiras e sofás drapeados.

Ouves a mulher sem abrigo
A confortar o cãozito assustado a seu lado
Ao estender farrapos para fazer a cama deles
Sob os degraus de mármore que os teus criados
Esfregavam todos os dias por causa das pegadas?

*

A sonhar ou acordado?

Um homem corre atrás de mim na rua
Para me vender um relógio de bolso.
Parece um pregador antigo, de outros tempos
Pálido como um fantasma e vestido de negro.

O relógio da estação de comboios
Parara nos cinco minutos para as onze.
O do banco de poupanças
Jurava serem quase três

Quando me abordou com o relógio
Cuja falta de números e ponteiros
Queria que eu examinasse e admirasse
Antes de ficar sem ar com o preço pedido.

*

O meu amigo Alguém

Por causa da repentina corrente de ar frio,
É possível, uma porta abriu-se
Algures na quietude do anoitecer.
Alguém hesita à entrada
Com um sorriso leve
De premonição feliz.

Neste dia sem data,
Numa rua secundária, escura
Tirando a luz de uma TV
Aqui e além,
E uma árvore solitária em flor
Arrastando uma cauda longa
De pétalas brancas e sombras.

 

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▪ Charles Simic
(Sérvia 🇷🇸)
Mudado para português por _ Francisco José Craveiro de Carvalho _ (Poeta, Tradutor e Matemático)

░ O tempo dos poetas menores está a chegar. Adeus Whitman

O tempo dos poetas menores está a chegar. Adeus Whitman,
Dickinson, Frost. Bem-vindos vós cuja fama nunca passará da
família mais chegada, e talvez um ou dois amigos intímos reuni-
dos depois do jantar à volta de um jarrão de rude vinho tinto…
enquanto as crianças adormecem e se queixam do barulho que
fazes ao vasculhar os armários à procura dos teus poemas antigos,
com medo que a tua mulher os tenha deitado fora na limpeza da
última primavera.
Neva, diz alguém que espreitou a noite escura e que, depois, tam-
bém se volta para ti quando te preparas para ler, de uma forma
algo teatral e uma face que cora, o longo e tortuoso poema de
amor cuja estrofe final (que não sabes) falta sem remissão.

 

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▪ Charles Simic
(Sérvia 🇷🇸)
in “Previsão de tempo para utopia e arredores”, Assírio & Alvim, Lisboa, 2002
Tradução – José Alberto Oliveira

░ Um século de apanhar nuvens. Navios-fantasmas

Um século de apanhar nuvens. Navios-fantasmas chegando e
partindo. O mar mais fundo, mais vasto. O papagaio na gaiola de
bambu falava várias línguas. O capitão no daguerreótipo tinha as
bochechas pintadas de vermelho. Ele trouxe uma rapariga semi-
nua dos trópicos que mantinham presa no sobrado mesmo
depois da morte dele. À noite ela emitia sons que poderiam ser
um cântico. O capitão falou de uma raça de homens sem boca
que subsistiam apenas com o cheiro das flores. O que fez com
que a sua mulher e a sua mãe dissessem uma oração pela salvação
de todas as almas não baptizadas. Uma vez, contudo, descobri-
mos o capitão a tirar a sua barba. Era falsa! Por baixo tinha outra
barba que parecia igualmente absurda.
Era o tempo dos passeios de viúvas atarefadas. As línguas mortas
do amor ainda se usavam, mas também muito silêncio, muita gri-
taria muda em altos berros.

 

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▪ Charles Simic
(Jugoslávia, n. 1938)
in “Previsão de tempo para utopia e arredores”, Assírio & Alvim, Lisboa, 2002
Mudado para português – José Alberto Oliveira

░ Álgebra do início da noite

A louca prosseguia desenhando Xs
Com um pau de giz escolar
Nas costas de pares inadvertidos,
De mãos dadas, rumo a casa.

Era inverno. Já escurecera.
Não se conseguia ver-lhe a cara,
Embuçada como estava e furtiva.
Como se fosse levada pelo vento, com asas de corvo.

O giz ter-lhe-ia sido dado por uma criança.
Tentava-se descobri-la na multidão,
Esperando que fosse muito séria, muito pálida,
Com uma lasca de ardósia negra no bolso.

 

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▪ Charles Simic
(Ex-Jugoslávia, n. 1938)
in “Previsão de tempo para utopia e arredores”, Assírio & Alvim, Lisboa, 2002
Mudado para português por _ José Alberto Oliveira_ Poeta, Tradutor e Médico