░ o nó da tristeza

de ter esperado tanto
eu risquei, eu rasguei, eu matei luas
nos abismos perversos
dos espelhos

e dancei na poalha
dos cinzéis
até as mãos chorarem sujas
por entre as fendas
dos muros

 

rasguei-me
na terra e nas árvores
para que da dor que sobrasse
se multiplicassem estátuas de chumbo
de lábios abertos e olhos
gigantes

por onde a escuridão morresse
e deixasse ao uivo dos lobos
a tarefa difícil de murmurar a luz
no coração da terra fria
por entre a água e a pedra
no peito dos pinheiros
por onde rebentavam as manhãs
amenas,

suaves, como eram
as tuas mãos no meu rosto
ou a tua voz de abrigo
quando tropeçava naquela linha
onde se esconde o nó
da tristeza

 

_
▪ Gil T. Sousa
(Vila Nova de Gaia, n. 1957)
in “Água Forte” _ Poesia Reunida _ Editora Urutau, Galiza e Brasil, 2019

░ INCERTO

que hora foi essa
que saltou do ventre
dos relógios
como um garrote
de cinzas?

devo ainda
esperar por mim,
enlouquecer no regaço
das catedrais como
pingo de sol num
peito de viúva?

eu quero dançar
sobre as lâminas rombas
deste tempo
quero cortar-me até ao osso
porque só a dor
é capaz de nos revelar
a grande mentira
que há por detrás
de todas as coisas

tranquilo, assim sereno
de saber que nunca
a posterioridade se
interessará por mim

 

_
▪ Gil T. Sousa
(Vila Nova de Gaia, n. 1957)
in “água forte”, Poesia Reunida, Editora Medita, Brasil, 2014

░ Nostalgia

o tempo
descansa dos seus crimes
preso à sombra fiel
desta memória
o amor
como um obediente
braço quebrado
reclama
o derramado vermelho
dum céu vencido
e os gritos
outrora assassinados
são agora palavras recusadas
suspensas nos lábios de pedra
desta aldeia tão remota
como tu

 

__
▪ Gil T. Sousa
(Vila Nova de Gaia, n. 1957)
in “água forte”, A Cadeira de Van Gogh – Associação Cultural, Editora Medita (Brasil), 2014