Até mesmo a manhã custa a perceber.
É como se alguém me decepasse a cabeça a meio da noite
e as horas se enganassem à volta do meu pescoço.
É fácil retratar uma degolação poética
em tempos de barbárie
tecnológica.
Afinal acordei no meio de gente ainda com cabeça
e eu sou aquele avô que os media
sempre ensinam.
Desgraçados dos tais
vestidos de amarelo para melhor serem vistos
com a faca viva encostada à garganta.
Comecei com a manhã imprecisa
meio cego a procurar um verso meu no meio da bruma
com a delicada nervosa faca de papel.
O mundo é um globo de gente ajoelhada,
de cabeças suspensas. E eu ao sair, só, do sono,
decapito o poema.
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▪ Armando Silva Carvalho
(Óbidos, 1938 – 2017)
in “A Sombra do Mar”, Assírio & Alvim, Lisboa, 2015