A Ordem de Cristo não tem graus, templo, rito ou passe

Subsolo

A Ordem de Cristo não tem graus, templo, rito, insígnia ou passe. Não precisa reunir, e os seus cavaleiros, para assim lhes chamar, conhecem-se sem saber uns dos outros, falam-se sem o que propriamente se chama linguagem. Quando se é escudeiro dela não se está ainda nela; quando se é mestre dela já se lhe não pertence. Nestas palavras obscuras se conta quanto basta para quem, que o queira ou saiba, entenda o que é a Ordem de Cristo — a mais sublime de todas do mundo.

Não se entra para a Ordem de Cristo por nenhuma iniciação, ou, pelo menos, por nenhuma iniciação que possa ser descrita em palavras. Nãos se entra para ela por querer ou por ser chamado; nisto ela se conforma com a fórmula dos mestres: «Quando o discípulo está pronto, o Mestre está pronto também.» E é na palavra «pronto» que está o sentido vário, conforme as ordens e as regras.

Fiel à sua obediência — se assim se pode chamar onde não há obedecer — à Fraternidade de quem é filha e mãe, há nela a perfeita regra de Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Os seus cavaleiros—chamemos-lhes sempre assim — não dependem de ninguém, não obedecem a ninguém, não precisam de ninguém, nem da Fraternidade de que dependem, a quem obedecem e de que precisam. Os seus cavaleiros são entre si perfeitamente iguais naquilo que os torna cavaleiros; acabou entre eles toda a diferença que há em todas as coisas do mundo. Os seus cavaleiros são ligados uns aos outros pelo simples laço de serem tais, e assim são irmãos, não sócios nem associados. São irmãos, digamos assim, porque nasceram tais. Na ordem de Cristo não há juramento nem obrigação.

Ela, sendo assim tão semelhante à Fraternidade em que respira, porque, segundo a Regra, «o que está em baixo é como o que está em cima», não é contudo aquela Fraternidade: é ainda uma ordem, embora uma Ordem Fraterna, ao passo que a Fraternidade não é uma ordem.

s.d.

 
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▪ Fenando Pessoa
( Portugal 🇵🇹 )
in “Fernando Pessoa e a Filosofia Hermética – Fragmentos do espólio.”
Fernando Pessoa- (Introdução e organização de Yvette K. Centeno.) Lisboa: Presença, 1985.
“Subsolo”

MORNING STAR

Meus pés pisam a Câmara do Meio,
Minhas mãos tocam o que os Anjos são.
Já de onde estou, branqueja o Limiar
Do íntimo Sacrário. Sinto o ar
Do silêncio ulterior tocar meu seio,
E rasgam-se olhos no meu coração.

Mas que é tudo isto, se isto não é nada?
Que sei eu disto?, que bem pode ser
Aquela aérea, falsa e linda estrada
Que nos desertos se consegue ver?
Venci? Perdi-me? Não o sei dizer.

Poder! Poder! Ah,sempre a maldição
Da substância do mundo! Quem me dera
Que me nascera no ermo, coração
Antes a ânsia de ser só mesquinho,
Antes um sono cheio de perdão,
E ser agora qual menino eu era,
(Dos mesmos Anjos mais fiel vizinho).

Caminhei como os homens; sou como esse
Que viajou países por achar,
E não achou mais neles do que houvesse
Na Pátria onde se houve de apartar.
Tudo é aqui, mais mar ou menos mar.
(…)

 
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▪ Fernando Pessoa
( Portugal 🇵🇹 )
Rosea Cruz, Edições Manuel Lencastre, 1989