J’habite une douleur

Não entregues o cuidado de governar o coração a essas ternuras semelhantes ao outono do qual imitam o ritmo plácido e a agonia afável. O olhar enruga-se precocemente. O sofrimento conhece poucas palavras. É melhor que te deites sem fardos: sonharás com o futuro e a cama ser-te-á leve. Sonharás que a tua casa não tem vidros. Estás impaciente para te unires ao vento, ao vento que numa noite percorre um ano. Outros cantarão a encarnação melodiosa, a carne que não personifica senão o feitiço da ampulheta. Tu condenarás a gratidão que se repete. Mais tarde, identificar-te-ão a um qualquer gigante desintegrado, senhor do impossível.

E no entanto.

O que fizeste apenas aumentou o peso da tua noite. Voltaste à pesca nas muralhas, à canícula sem verão. Estás furioso contra o teu amor no centro de uma conivência aflita. Idealizas a casa perfeita que nunca verás edificada. Para quando a safra do abismo? Mas tu vazaste os olhos do leão. Tu julgas ver a beleza passar por cima das lavandas negras…

O que é que te ergueu, ainda uma vez, um pouco mais alto, sem te convencer?

Não há morada pura.

 


▪René Char
( França 🇨🇵 )
Mudado para português por Soledade Santos

E no entanto o dia é fundo

O horizonte abre-se na cal que maio lava
e no entanto o dia é fundo
de armários, invernos e cheiros
a madeira encerada.
No côncavo de maio existem
antigos sons de respiração,
crianças perdidas no escuro
procurando saídas que não encontram.
Lembro-me –
eu brincava no vão da escada
e vieram dizer (seria maio
ou julho talvez) a mãe morreu.

 

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▪ Soledade Santos
( Portugal 🇵🇹 )
in “Sob os teus pés a terra”, Editora Artefacto, Lisboa, 2010

░ A ÚNICA VERDADE

Em louvor de Bernardim Ribeiro

A única verdade é a linha que puxo na extremidade da agulha,
ponto a ponto desenho
a paciência, refaço os gestos
das minhas avós.

Quantas coisas se passavam na cabeça das mulheres em seu estrado,
em seus olhos dobrados,
e eu que nunca tive
paciência.

Mas quem fui bem vedes que o não sou já
e pois que não tenho armas para ofender,
faço desenhos de flores brilhantes com linhas
de seda paciente,
é tudo o que posso fazer
com os olhos dobrados
na noite
que não pára de crescer.

 

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▪ Soledade Santos
(Sabugal, n. 1957)
in “Sob os teus pés a terra”, Editora Artefacto, Lisboa, 2010

 

░ Não sou paciente

Não sou paciente eu só finjo
que tenho paciência.
Aprendi a abrandar marés contando lentas
inspirações expirações alternadas completas,
aprendi a dormir com a chuva a lavar os telhados.
Mas em dias
como o de hoje era capaz,
de te arrancar os olhos e fazer com eles dois anéis
para usar como punhais
entalados no cinto da saia.

 

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▪ Soledade Santos
(Sabugal, n. 1957)
in “Agio”, Revista de literatura – nº. 1, Editora Artefacto, Lisboa, 2011

░ TORMENTO

Investia duramente
mãos arranhadas
das silvas e da ternura dilapidada.
Investia sobre as palavras,
era a intempérie/a míngua
a mais antiga das tempestades
que regressava.

 

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▪ Soledade Santos
(Sabugal, n. 1957)
Poema inédito publicado com prévia autorização da autora