POEMA DO NATAL

Caíram bombas em Seul, minha mãe
e dizem que não foi ninguém.
Vieram das sete partes da loucura
e em pássaros sombrios
e deitaram bombas em Seul
e não foi ninguém.
– Hoje é Natal, minha longínqua mãe.

Como eu o mundo tem a mãe ausente.
– Seul fica longe
mas é vizinha da nossa alma
amarga e doente…

Não foi ninguém
mas há cravos vermelhos e mortais
nos pulsos das crianças
e enquanto o Natal se pendura
nos pinheiros de todos os pontos cardeais
meteram-se estilhaços
na carne das esperanças
e as mulheres grávidas abrem os ventres
às estrelas das metralhas
e as entranhas estão quentes
de balas e vinganças.

Hoje é Natal e dizem que Cristo nasceu
e nós todos nascemos cada qual em sua cruz…
e depois cuspimo-nos nas caras
e morremos iluminados de pus.

Hoje é Natal, minha mãe
e caíram bombas em Seul
e apesar de não ser ninguém
secaram-se todos os pinheiros da pequena cidade.
– O mundo não tem Natal nem mãe.

 


▪ Herberto Helder
( Portugal 🇵🇹 )
in “Eco do Funchal,1953)

Narração de um homem em maio

Estou deitado no nome: maio, e sou uma pessoa
que saiu
violenta e violentamente para o campo.
Um homem deitado entre os malmequeres
rotativos do mês atraves-
sado pelo movimento.
É a noite aproximada com o livro
dentro. Deitado sobre bocados
de estrelas no pensamento.
Era a casa absorvida na manhã
Livro de poesia arrebatada. Poesia
da mulher emparedada no amor
e o homem emparedado na destruição
do amor.
É agora o leitor com a atenção corrupta
sobre o livro.
O livro que arde nos ossos
do leitor afogado no poema arrebatado.

Estou estendido como autor na ligeira
palavra que a noite molha
e os ventos sopram como se sopra
uma brasa.
Um homem que saiu de casa, com toda
a magnífica violência do amor.
É o tempo revelador.
Agora inteligente deste lado,
contra o lado exemplar de maio aglomerado.
Espécie de primavera comburente.
A dor total. O livro.
O pensamento do amor. A
experiência.
E a vida ardente do autor.

Deitei-me também no campo
de outras coisas. Com discurso. Com
rigoroso segredo.
Vi o caçador levantar o arco-íris
e atirar, fechada, a morte
ao cabrito primaveril.
E tudo calei como experiência
de um sono inspirado.
Vi a ressurreição, maio
infestado. Ouvi
passar o ciclista da primavera
sobre o ruído da ressurreição.
Conheci a existência do roubador, o ciclista
que penetra no exemplo da fábula.
Estou deitado em meio campo
de uma espécie de despedida.
Meio campo de maio, e outro meio
de pessoalíssima vida.

São coisas que já não estão mais
do que na maturidade da idade.
Fiz comércio. Indústria. Dor.
A garganta lavrada pelo canto.
Ia a bicicleta com o seu poeta que punha a mão
no poema da bicicleta.
E iam todos – poema, bicicleta, poeta e mão –
por sobre o coração da terra e a ressurreição
da primavera. Ganhei
a minha idade concluída.
Cacei. Ou plantei. Ou cortei.
A vida vida.
Havia o movimento com a sua bicicleta
e a canção com o seu poeta.
A vida merecida.

Vejo ervas movimentadas e estrelas paradas.
E a consumação das coisas universais.
Geram-se de novo as coisas
universais. A pureza.
A natureza da pureza.
A própria natureza das coisas universais.
Da dor sei o amor.
O amor do ardor. Sei mais
do que posso saber da matéria do amor.
Fico deitado no campo revolucionário:
a paciente brutalidade da primavera
é como a brutalidade
delicada da paixão.
O violentamente demorado amor,
e a sua ressurreição.

Já estivera deitado ao lado das mulheres.
Elas paravam completamente
como caçadores ou bichos fascinados.
Não tinham pensamento nem idade.
Era a força do corpo. O movimento.
Estou neste lado desse lado
do corpo. Sei o poema
do conhecimento informulado.
Respira monotonamente uma estrela
entre os ossos.
Estrela levemente destruída.
Roída pelo louco rato lírico
da idade. Estou no pensamento.
Parado no movimento de uma vida.

Mexo a boca, mexo os dedos, mexo
a ideia da experiência.
Não mexo no arrependimento.
Pois o corpo é interno e eterno
do seu corpo.
Não tenho inocência, mas o dom
de toda uma inocência.
E lentidão ou harmonia.
Poesia sem perdão ou esquecimento.
Idade de poesia.

————————————————————–1953-60
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▪ Herberto Helder
( Portugal 🇵🇹 )
in “Poesia Toda”, Assírio & Alvim,  Edição 291, Novembro de 1990