Os CONVENCIDOS DA VIDA & OS INTRIGUISTAS

Todos os dias os encontro. Evito-os. Às vezes sou obrigado a escutá-los, a dialogar com eles. Já não me confrangem. Contam-me vitórias. Querem vencer, querem, convencidos, convencer. Vençam lá, à vontade. Sobretudo, vençam sem me chatear.

(…)

Andam à tua volta para ver por que fresta podem entrar para dentro de ti, da tua vida. Adulam-te. Chegam alguns a dizer que és «o maior». A despropósito. Como sabes, raramente alguém é «o maior». Medem o que escreves com marcas atléticas ou espalham que na adjectivação é que tu és forte, imbatível. Acreditas? Querem extrair de ti todo o sumo de jocosidade de que te afirmam prenhe. Contam-te como uma anedota. És tão engraçado, sabias? Irreverente é o que és, dizem outros. Brincalhão apenas, propalam uns quantos.

Quando falas ou simulas falar de ti próprio e amalgamas passado, presente, futuro, há sempre os que perguntam se o que contaste é verdade ou não. Nunca indagam se vai ser verdade. O que lhes interessa é saber, com a curiosidade dos intriguistas, se o que se passou (ou parece ter-se passado) se passou mesmo contigo. É um erro de gente vulgar. Parasitários que são, qualquer invenção ou patranha, qualquer «mentir verdadeiro» é acepipe biográfico, é pretexto para te enfileirarem na nulidade biográfica que é a deles próprios e tecerem  incansavelmente histórias a teu respeito.

Não te deixes seduzir pelo gosto da conversa. Essa pequena gente não merece a mais pequena atenção, nem tu precisas de espectadores para o salutar exercício diário de falar por falar.

E lembra-te do provérbio do Almada: «Não metas o nariz na vida dos outros se não queres lá ficar.» Do mesmo modo, não deixes que metam o nariz na tua vida. Caso contrário, vais ficar cheio de gente, com a sua vida escassamente interessante. O tombo da vida vulgar já foi feito por escritores como Camilo. E tenho a impressão de que, no essencial, a vida vulgar continua a mesma.

Desunha-te a escrever (olha que já tens pouco tempo!), mas fá-lo com a discrição e a reserva de quem não se dá às primeiras. É outro exercício salutar.

 

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▪ Alexandre O’Neill
( Portugal 🇵🇹 )

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POEMA ANACRÓNICO

Gosto dos que não sabem viver,
dos que se esquecem de comer a sopa
(Allez-vous bientôt manger votre soupe,
s… b… de marchand de nuages?»)
e embarcam na primeira nuvem
para um reino sem pressa e sem dever.

Gosto dos que sonham enquanto o leite sobe,
transborda e escorre, já rio no chão,
e gosto de quem lhes segue o sonho
e lhes margina o rio com árvores de papel.

Gosto de Ofélia ao sabor da corrente.
Contigo é que me entendo,
piquena que te matas por amor
a cada novo e infeliz amor
e um dia morres mesmo
em «grande parva, que ele há tanto homem!»
(Dá Veloso-o-Frecheiro um grande grito?..)
Gosto do Napoleão-dos-Manicómios,
da Julieta-das-Trapeiras,
do Tenório-dos-Bairros
que passa fomeca mas não perde proa e parlapié…

Passarinheiros, também gosto de vocês!
Será isso viver, vender canários
que mais parecem sabonetes de limão,
vender fuliginosos passarocos implumes?
Não é viver.

É arte, lazeira, briol, poesia pura!
Não faço (quem é parvo?) a apologia do mendigo;
não me bandeio (que eu já vi esse filme…)
com gerações perdidas.

Mas senta aqui, mendigo:
vamos fazer um esparguete dos teus atacadores
e comê-lo como as pessoas educadas,
que não levantam o esparguete acima da cabeça
nem o chupam como você, seu irrecuperável!

E tu, derradeira geração perdida,
confia-me os teus sonhos de pureza
e cai de borco, que eu chamo-te ao meio-dia…
Por que não põem cifrões em vez de cruzes
nos túmulos desses rapazes desembarcados p’ra
morrer?

Gosto deles assim, tão sem futuro,
enquanto se anunciam boas perspectivas
para o franco frrrrançais
e os politichiens si habiles, si rusés,
evitam mesmo a tempo a cornada fatal!

Les portugueux…
não pensam noutra coisa
senão no arame, nos carcanhóis, na estilha,
nos pintores, nas aflitas,
no tojé, na grana, no tempero,
nos marcolinos, nas fanfas, no balúrdio e
… sont toujours gueux,
mas gosto deles só porque não querem
apanhar as nozes…

Dize tu: – Já começou, porém, a racionalização do
trabalho.
Direi eu: – Todavia o manguito será por muito tempo
o mais económico dos gestos!

Saber viver é vender a alma ao diabo,
a um diabo humanal, sem qualquer transcendência,
a um diabo que não espreita a alma, mas o furo,
a um satanazim que se dá por contente
de te levar a ti, de escarnecer de mim…

Saber viver é vender a alma ao diabo,

▪ Alexandre O´Neill
( Portugal 🇵🇹 )

TODOS OS DIAS OS ENCONTRO

Todos os dias os encontro. Evito-os.
Às vezes sou obrigado a escutá-los, a dialogar com eles. Já não me confrangem.
Contam-me vitórias. Querem vencer, querem, convencidos, convencer. Vençam lá, à vontade.
Sobretudo, vençam sem me chatear.

 

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▪ Alexandre O’Neill
( Portugal 🇵🇹 )