atrás do atrás

pode levar muito tempo
até que o escondido de suas pálpebras
deixe de ser gelo para habitar uma nova casa
atrás do atrás estão os verdadeiros motivos
que fizeram você se despir
e aceitar meu convite para tomarmos um banho
atrás de nós apenas o tempo passa
as floriculturas _ inclusive _ fecham as suas portas
porque não recebem clientes após as 22 horas
a moça diz _ sinto muito estamos fechados
o que não importa
porque não queremos nos presentear com flores

ontem quando voltei uma neblina espessa
cobria o mundo e o vidro do meu carro
podia jurar que o lugar que passo todos os dias
não era o mesmo lugar
pois havia uma nuvem branca
como o gelo que se esconde em nossas pálpebras

ninguém inventou um instrumento
para medir as expectativas do vento (ou as nossas)
nós e o vento somos os mesmos
:
vivemos e gemeremos sobre um nicho de porta
translúcida _ opaca _ ou de chumbo
nada um importa
:
o que está escondido está atrás do atrás
e vindo para a frente
como uma centena de centopéias
atrás de uma flor de açúcar
e a vida humana
atrás do atrás _ sempre atrasada
esperando um trem ou coisa parecida
para levar seus cadáveres para a bolsa de valores
haverá chuva?
alguém incomodará nosso sexo durante a tarde?
atrás do lençol deixaremos um suor petrificado
guardado como um precioso caco de vidro
que entretanto não cortará nossa pele

gosto de inventar matérias novas
para esconder as matérias velhas
de sufocar o conhecido
andar de teleférico
e fazer têmpera com areia

atrás de mim está você
e eu atrás de você
sem que ninguém saiba
quem chegou primeiro
ou quem sairá depois
quando o que estiver escondido
se revelar para sempre
como o mais visível
e sempre presente
etc.

 

_
▪ Augusto Meneghin
(Brasil 🇧🇷)
in “O mar sem nós”, 2ª edição, Editora Urutau, Brasil – Galiza – Portugal, 2019


 


 

░ Aurora Consurgens

veja bem, como poderemos
desafogar o mercúrio, Antonio
se tudo o que temos
são apenas trapos fervidos?
e este vinho
fermentado em plena sexta-feira
poderá por acaso
extrair de nossa loucura
uma lucidez estóica?
os ciganos se vão, Antonio…
as caravanas
o amargo da nectarina velha
até mesmo aquele velho romance
que relemos tantas vezes
por não termos mais que um livro
e um vidro de azeitonas.

o calendário na porta
uma mandrágora seca
para espantar os espíritos
e impedir que as crianças
morram todas
de uma disenteria industrial.
aqui neva,
mas nunca tivemos gelo
ou sequer um recinto
com os mantimentos que duram.
você fuma demais
e bebe exageradamente:
deve ser por isso que neva
mas nunca tivemos gelo.

foi algum conquistador
que esqueceu seu canhão
no deserto em que moramos
e agora as crianças brincam
enfurecendo o espírito ruivo
de um bucaneiro qualquer.
veja como pulam sobre a boca
e testam o eco
sem medo de serem mutiladas.
quando eu crescer serei como elas
só que mais velha
e sem canhão.
serei mais negra também
guardando em cada bolso
uma esperança e uma estrela
(não importa a ordem).

parece um sonho, Antonio
este lugar que moramos
e você fazendo amor:
o vento que abre
tanto as pernas
quanto os demônios que você me ensinou.
agora tenho mais demônios
do que quando casamos.
naquela época eu apenas sabia
que a primeira vez iria doer.
o resto aprendi tudo sozinha.
por isso neva
e nunca tivemos gelo,
apenas o barulho das crianças
e o canhão enferrujado.

veja lá
se encontram um tabuleiro de xadrez.
meu bisavô dizia
que o jogo de xadrez
explicaria a vida
se ele soubesse jogar,
por isso o enterrou bem longe
na esperança que seu segredo
não fosse achado por ninguém.
morreu sabendo apenas
que o peão andava para frente
e era peça
pouco importante.
o sol é longe, Antonio?
pensam que somos pobres
porque somos ignorantes
– eles não sabem
que você é alquimista
e que faremos ouro
com o parafuso da fábrica.

já está noite.
não quero fazer amor.

 

_
▪ Augusto Meneghin
(Brasil SP, n. 1987)
in “O mar sem nós”, Editora Urutau, Brasil SP, 2015

 

░ Um evangelho úmido

Gostava que o mundo semeasse crimes,
que os sonhos fossem abertos com um machado.
No teatro, galgava o lugar desabado,
a fileira onde se podia fazer amor.
Queria entrar para sempre na fumaça
e desertar os traidores da sombra e da ira.
Sua mãe – não era sua mãe.
Seu pai – não era seu pai, etc.
Assim, para deixar sua casa intacta,
cobriu-a de memórias,
entregou-a ao coveiro mudo.
Era um passageiro, desses que se perdem.
Por isso, podia sempre dizer: “Eu retornei”.

Apreciava mudar as árvores de lugar
e também as montanhas.
Atirava a esmo nos escritórios
e somente distribuía as próprias dívidas.
Era, para as vacas, um novo profeta,
liberto das profecias e sobretudo do futuro.
Seus olhos nunca miravam a alvenaria
ou a engenharia fictícia dos filósofos,
porque ele sabia que o mundo não estava
assentado nas costas de um pote de barro.
Por isso, podia sempre dizer: “Não sou um oleiro
[das coisas”.

Comia as ramagens que se multiplicam,
sobretudo durante a noite.
Não raro seu prato continha vidros de estrela.
Preferia o esquecimento das grandes eternidades
e não se entristecia com a origem de tudo.
Em sua mão, o espaço se inaugurava a partir de um vazio,
como um útero que viesse do céu.
Por isso, podia sempre dizer: “Não sirvo às altitudes”.

 

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▪ Augusto Meneghin
(Brasil SP, n. 1987)
Poema inédito publicado com prévia autorização do autor