Nasci no mesmo dia que Emily Dickinson
quase dois séculos depois
e as coisas mudaram um pouco
desde então
não tive
a sua integridade perante a dor
nem o seu ouvido subtil para as revelações
vivo num prédio alto
onde não chegam os pássaros
só um ruído de sirenes
que não canta
é uma cidade imensa
aqui somos todos Ninguém
mas não aprendemos
a guardar o segredo:
ao caminhar regamos
o nosso nada nas esquinas
Nasci com a pele escura
de um país do trópico
e vim procurá-la neste tumulto
tão distante da sua voz
que se enredava nos prados
imagino-a calando-se nos ladrilhos
vejo os seus manuscritos de letras estreitas
como ramos de tinta negra
que se quebram
em qualquer capa
na lista das compras
e se voltam a enlaçar
para inventar o mundo
Nasci num dez de dezembro como ela
e não trouxe esse silêncio
não obstante
graças ao esconjuro
de repetir os seus versos
enquanto mudam os semáforos
estou a flutuar
ainda
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▪ María Gómez Lara
(Colômbia, n. 1989)
in “Nó de Sombras”, Editora Glaciar, Lisboa, 2015
Tradução – Nuno Júdice