JAN VOSS

Tal como a poesia, a pintura é um vício solitário. Nascida de uma solidão aceite ou de uma solidariedade desencantada, inventa para si própria e em si própria um comparsa, um companheiro, alguém a quem dirigir a palavra e o gesto. Palavras e gestos, e mais o gesto pressuposto, fazem um teatro. Teatro, porém, que não se basta, e que para existir, para escapar à realidade em que foi concebido, necessita de testemunhas (isto é, espectadores).
Ao convocar os espectadores, o criador não os convida para um colóquio, mas para um espectáculo. Espectáculo necessariamente escandaloso, porque desvelador do mais íntimo, do mais sagrado, do que, ao ser exposto, se torna mais sacrílego. Portador da chama ( “ voleur d’étincelles “ ), o criador transporta também o escândalo.
Espectáculo de gestos feitos a sós, de murmúrios pronunciados em sonhos, ressonâncias audíveis do mar interior, mar negro que explode em cores, que ganha contornos e formas, que se transforma em corpos, em homens que falam, que agem, que representam, que têm uma história e no-la contam. Isto o que eu quero ver na pintura e o que, porque são pintura, vejo nas telas de Jan Voss. Um labirinto, dirão. Mas quem tiver a chave, saberá orientar-se, ainda que à custa de uma certa desorientação inicial. E quem a não tiver, que se perca. De quem a culpa?

 

▪ José Manuel Simões
( Portugal 🇵🇹 )
in “Sobras Completas”, Editora Abysmo, 2016
 (Para fora da vitrina)

É NOITE

É noite
espero-te
fumo
como a chaminé dum hospital

Escrevo
palavras que nadam num aquário
Tenho peças de relógio perdidas nas veias
Sou um colar violento ao teu pescoço de planta

Fumo
e teço um manto de algas
para te cobrir ao menor sinal de chuva

O sangue flui
com os destroços e os ossos das horas

O cigarro pega fogo à noite

 


▪ José Manuel Simões
( Portugal 🇵🇹 )
in “Sobras Completas”, Editora Abysmo, 2016