░ BOM DIA, MEMÓRIA

Das horas perdidas junto a uma taça de chá,
das horas sonhadas junto ao Gran Meaulnes,
quando as mãos dos poetas eram dois aviões de hélice
e a filha do jardineiro chamava Rimbaud à sua lagarta.
Bom dia memória dos espelhos apagados,
palavras para dizer sete coisas com os lábios verdes:
querido foulard de névoa, mel com pássaro.
Bom dia cheiro da erva cortada, pontes do Outono,
cavalos com meninas vietnamitas pelo céu de Paris.
Das horas passadas junto a Proust,
das lentas horas escutando Moustaki,
quando brilhavam nos gira-discos os girassóis negros
e era o coração um barco ébrio feito de papel.
A vida nunca é fácil, ser feliz, anoitecer,
a cegonha marca as seis na sua campainha,
nos cata-ventos do Oeste em Outubro vai chover.
Bom dia memória das coisas mais simples,
os olhos dos meus gatos, o seu acordeão e ele.

 

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▪ Alexandra Domínguez
(Chile, n. 1956)
in “La conquista del aire”, Colección de Poesía de la Fundación Juan Ramón Jiménez, Huelva – ESP, 2000

Mudado para português por _ Sandra Santos_ (Portugal, 1994). Estudante, escritora e tradutora. Licenciada em Línguas e Relações Internacionais (Faculdade de Letras da Universidade do Porto), é actualmente mestranda em Estudos Editoriais (Universidade de Aveiro). Participa em projectos culturais, artísticos e literários. Traduz do português e inglês para o espanhol e do inglês e espanhol para o português. As suas traduções estão publicadas em Portugal, Espanha e América Latina, nos blogues e revistas “Cuaderno Ático”, “Buenos Aires Poetry”, “escamandro”, “Círculo de Poesía”, “Poesia vim buscar-te”, “Otro Páramo”, “La raíz invertida”, “mallarmargens”, “Bitácora de vuelos”, “Emma Gunst”, “Enfermaria 6” e “El Coloquio de los Perros”.



ORIGINAL VERSION / VERSÃO ORIGINAL

 


░ BUENOS DÍAS, MEMORIA

 

De las horas perdidas junto a una taza de té,
de las horas soñadas junto al Gran Meaulnes,
cuando las manos de los poetas eran dos aviones de hélice
y la hija del jardinero llamaba Rimbaud a su oruga.
Buenos días memoria de los espejos borrados,
palabras para decir siete cosas con los labios verdes:
querido foulard de niebla, miel con pájaro.
Buenos días aroma de la hierba cortada, puentes del otoño,
caballos con niñas vietnamitas por el cielo de París.
De las horas pasadas junto a Proust,
de las lentas horas escuchando a Moustaki,
cuando brillaban en el tocadiscos los girasoles negros
y era el corazón un barco ebrio hecho de papel.
La vida nunca es fácil, ser feliz, anochecer,
la cigüeña marca las seis en su campana,
en las veletas del oeste octubre va a llover.
Buenos días memoria de las cosas más sencillas,
los ojos de mis gatos, su acordeón y él.

 

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▪ Alexandra Domínguez
(Chile, n. 1956)
in “La conquista del aire”, Colección de Poesía de la Fundación Juan Ramón Jiménez, Huelva – ESP, 2000

░ A FAMÍLIA DE DORIAN GRAY

A minha mãe é socialista.
O meu pai ao fim desta rua cortando à direita.
Suspensa de uma lua em forma de bolacha,
vejo passar mendigos, oiço cruzar as sombras
dos que escrevem versos para a Academia.
A minha educação sentimental é um barco de papel
no tanque dos livros, as luvas do avesso de Wilde,
as alegres comadres do ambíguo Shakespeare.
Não quero dar a volta ao mundo,
por menos que isso cortaram a cabeça ao Rei Sol.
Eu tenho outra paixão, toda a gente tem outra paixão,
tem-na o girassol, a bandeira do meu país tem uma estrela,
os miúdos judeus têm um violinista no telhado,
a cor negra tem paixão pelas formigas.
O verão tardará a chegar, a minha família inventou o outono,
o meu pai no jardim há-de varrer as folhas,
a minha mãe vai contemplar a neve,
eu acenderei outra fogueira.
É assim a vida, razões para arder,
o clube de Dorian Gray, o céu, as estrelas.

 

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▪ Alexandra Domínguez
(Chile, n. 1956)
in “La conquista del aire”, Colección de Poesía de la Fundación Juan Ramón Jiménez, Huelva – ESP, 2000

Mudado para português por – Maria Soledade Santos (Poeta e Tradutora). Nasceu em 1957, no Sabugal. Publicou “Quatro Poetas da Net” (Edições Sete Sílabas, 2002) e “Sob os teus pés a terra” (Artefacto, 2011). Mantém os blogues de poesia e tradução: http://metade-do-mundo.tumblr.com/ e https://mdcia.wordpress.com/



VERSÃO ORIGINAL/ VERSIÓN ORIGINAL

 

LA FAMILIA DE DORIAN GRAY

 

Mi madre es socialista.
Mi padre al final de esta calle torciendo a la derecha.
Colgada de la luna con forma de galleta
veo pasar mendigos, oigo cruzar las sombras
de los que escriben versos hacia la Academia.
Mi educación sentimental es un barco de papel
en el estanque de los libros, los guantes del revés de Wilde,
las alegres comadrejas del ambiguo Shakespeare.
Yo no quiero dar la vuelta al Mundo,
por menos al Rey Sol le cortaron la cabeza.
Tengo otra pasión, todo el mundo tiene otra pasión,
el girasol la tiene, la bandera de mi país tiene una estrella,
los muchachos judíos tienen un violinista en el tejado,
el color negro tiene pasión por las hormigas.
El verano tardará en llegar, mi familia inventó el otoño,
mi padre en el jardín barrerá las hojas,
mi madre mirará la nieve,
yo encenderé otra hoguera.
Así es la vida, razones para arder,
el club de Dorian Gray, el cielo, las estrellas.

 

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▪ Alexandra Domínguez
(Chile, n. 1956)
in “La conquista del aire”, Colección de Poesía de la Fundación Juan Ramón Jiménez, Huelva – ESP, 2000

 

░ O poeta é um assunto ali no invisível

Esse homem é invisível, a sua matéria de calhandra é invisível,
anda no invisível com passos que produzem ruído nas ruas invisíveis,
come coisas invisíveis, respira o invisível, paga com moedas invisíveis.
O poeta é um assunto ali no invisível, cruza rios invisíveis,
deita-se com mulheres invisíveis, fala com palavras invisíveis.
Está em Dublin e é invisível, vai pelo céu em aviões invisíveis,
no seu coração a melancolia é invisível, pensa em coisas invisíveis,
lê Kavanagh que escrevia livros invisíveis,
por exemplo isto é invisível: My soul is an old horse
offered for sale in twenty fairs.
A sua fúria é invisível, a sua tempestade também é invisível,
trabalha numa fábrica invisível, gasta os cotovelos em hospedarias invisíveis,
Teillier era invisível, Parra é quase invisível, ninguém viu Rojas.
Os operários brindam no fim do dia com canecas invisíveis de cerveja,
os solitários instalam-se em hotéis invisíveis, falam ao telefone
com raparigas invisíveis, esperam em esquinas invisíveis por outros invisíveis.
No verão a chuva é invisível, abrem então um guarda-chuva invisível,
partem para regiões invisíveis para lerem poemas invisíveis,
encontram-se num parque com alguém invisível, amam o invisível.
O poeta é um assunto ali no invisível, até este poema é invisível,
um espelho é invisível, a cidade em que vivo é invisível,
o imprescindível e o insignificante, isso é o invisível.

 

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▪Alexandra Domínguez
(Chile n. 1956)
in “La conquista del aire”, Colección de Poesía de la Fundación Juan Ramón Jiménez, Huelva, 2000

Mudado para português por Luís Filipe Parrado (Poeta e tradutor)



VERSÃO ORIGINAL/ VERSIÓN ORIGINAL

 

EL POETA ES UN ASUNTO ALLÍ EN LO INVISIBLE

 

Ese hombre es invisible, su materia de alondra es invisible,
anda en lo invisible con pasos que hacen ruido en las calles invisibles,
come cosas invisibles, respira lo invisible, paga con monedas invisibles.
El poeta es un asunto allí en lo invisible, cruza ríos invisibles,
se acuesta con mujeres invisibles, habla con palabras invisibles.
Está en Dublín y es invisible, va por el cielo en aviones invisibles,
en su corazón la melancolía es invisible, piensa en cosas invisibles,
lee a Kavanagh que escribía libros invisibles,
por ejemplo esto es invisible: My soul was an old horse
offered for sale in twenty fairs.
Su furia es invisible, su tempestad también es invisible,
trabaja en una fábrica invisible, gasta sus codos en mesones invisibles,
Teillier era invisible, Parra casi es invisible, nadie ha visto a Rojas.
Los obreros brindan al final de la jornada con jarras invisibles de cerveza,
los solitarios se hospedan en hoteles invisibles, llaman por teléfono
a chicas invisibles, esperan en esquinas invisibles a otros invisibles.
En el verano la lluvia es invisible, abren entonces un paraguas invisible,
se van a provincias invisibles a leer poemas invisibles,
se encuentran en un parque con alguien invisible, aman lo invisible.
El poeta es un asunto allí en lo invisible, este mismo poema es invisible,
un espejo es invisible, la ciudad en la que vivo es invisible,
lo imprescindible y lo insignificante, eso es lo invisible.

 

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▪Alexandra Domínguez
(Chile n. 1956)
in “La conquista del aire”, Colección de Poesía de la Fundación Juan Ramón Jiménez, Huelva, 2000