TEORIA DA NARRATIVA FAMILIAR

Naquele tempo o meu pai trabalhava
por turnos
como herói socialista
no sector siderúrgico
e dormia com a minha mãe.
A minha mãe esfregava
a sarja encardida:
a água ficava da cor da ferrugem.
Havia, por perto, um cão
esgalgado,
sempre a rondar.
Depois, a minha irmã nasceu
e eu fui obrigado
a rever a minha mitologia privada do caos.
Entre uma coisa e outra
aprendi a mentir.
E isso, não sei se sabem, mudou tudo.

 
_
▪ Luís Filipe Parrado
( Portugal 🇵🇹 )
in “Entre a Carne e o Osso”, Língua Morta, Lisboa, 2012
 

░ Poema com duas imagens tiradas a Dylan Thomas

Gosto das noites frias de inverno
quando não estás. Escuto
canções de homens cansados de cantar
e vejo como a solidão
se dispersa no fogo lento da lareira.
Ou releio poemas que me falam das águas
do coração e das suas marés,
amontoo pratos e talheres no lava-loiça,
abro a última garrafa
de um vinho precioso.

Nas outras noites de inverno,
quando estás, nada de semelhante acontece.
A casa mantém-se sóbria, silenciosa,
perplexa. Por isso, desligo as luzes
e ponho-me a seguir os traços
contínuos do teu rosto no escuro,
depois da morte de deus
parece impossível mas a luz irrompe ainda
onde nenhum sol brilha.

 

__
▪ Luís Filipe Parrado
(Seixal, n. 1968)
in “Entre a Carne e o Osso”, Língua Morta nº. 24, Lisboa, 2012