░ Sede

Está vazio o teu peito__No lugar
do coração talvez um ataúde
ou nem isso__uma sombra
igual a essa noite onde procuras
o mar__o imenso mar__e só encontras
sede

 

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▪ Fernando Pinto do Amaral
(Lisboa, n. 1960)
in “Revista Relâmpago, nº. 35″, Lisboa, 2014

░ Conselho aos críticos do novo século


_________________________Admit nothing
_________________________Blame everyone
_________________________Be bitter
_________________________Barbara Kruger

Se queres parecer inteligente
desdenha de quem escreve coisas simples
e desconfia, desconfia sempre
dos sentimentos, das convicções.

Diz mal da tua época,
procura dar a tudo um ar difícil
e cita alguns autores que ninguém leu.

Se queres que te respeitem,
reserva a admiração e o elogio
pra certos mortos bem escolhidos,
de preferência estrangeiros,
e acima de tudo
não caias nunca na vulgaridade
de ser compreendido pelos que te lerem.

 

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▪ Fernando Pinto do Amaral
(Lisboa, n. 1960)
in “Pena Suspensa”, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2004

░ Azul

Um dia hás-de nascer fora de ti
num sobressalto novo deste céu
onde se afoga a luz da madrugada
já sem nenhuma estrela que te aceite
a translúcida febre das palavras.
Um dia hás-de romper os cegos nós
do monstro a que chamavas coração,
o antigo labirinto que te ilude
a inocente máquina do corpo
na escuridão dos passos desastrados
em busca de um azul que te conheça.
Um dia hás-de falar sem dizer nada
que o mundo compreenda e será teu
esse primeiro azul da madrugada.

 

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▪ Fernando Pinto do Amaral
(Lisboa, n. 1960)
in “Saudade: Revista de Poesia”, n.º 11, Associação Amarante Cultural, Amarante, 2009