HÁ TANTAS MANEIRAS DE DIZER O DESPERDÍCIO

Há tantas maneiras de dizer o desperdício
de uma noite: aquela em que dormimos
cedo demais, aquela em que dormimos
menos do que deveríamos, aquela em que
ficamos em casa e aquela em que
não mais sabíamos como regressar.
A noite atravessada de palavras, uma
depois da outra, cruéis, estéreis,
a noite rígida dentro do silêncio,
a noite solitária, e aquela em que a presença
humana é uma mácula, a madrugada
rendida ao desespero de uma prece
ou a noite órfã, sem deus, fora do tempo.
As noites de álcool e nicotina, de covardias
perante o tédio, de um torpor pantanoso,
em que não foi possível apagar as luzes,
em que caímos na cama com as roupas sujas,
ou nus e sonâmbulos – noites de ambulâncias,
de gritos, de um eco de garrafa
que se quebra. As primeiras noites
e as últimas, quando adormecemos
com um livro na mão, ou aquelas
em que compreendemos o que antes era
suspeita: ver o que aparece no espelho
quando não há ninguém diante dele
e não saber o que fazer com isso.

 

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▪ Daniel Francoy
( Brasil 🇧🇷 )

ESCREVER APÓS O HORROR

Escrever após o horror
talvez mantenha um homem vivo —
mas qual o poema das noites brancas
entrevistas pelas cortinas da sala?
Diante da janela, o perfil de uma palmeira
fossilizada, uma criança chora,
descerro a cortina, pressinto o luar
para lá do prédio defronte, no gramado
a relva judiada, a persistência dos grilos,
a sutil, misteriosa incorporação
de tudo a um cristal já trincado.

Tenho a ternura. Mantenho-a.
Sou o mesmo das garapas na praça.
O mesmo que não recusa esmolas.
O mesmo da busca dos gatos da avó
pelos telhados da casa eterna,
pisando com cuidado, sentindo ranger
a telha fria sob os meus pés
no instante em que alguém lá em baixo morre.
O mesmo que temia a porta fechada
no fundo de um corredor catacumba
(o amor alquebrado e eu, Pietà
de um poema desesperado, caminhando por entre
miasmas de cigarros e culpas irremíveis).
O mesmo dos poemas que floresciam
ainda quando não havia um tema,
ainda quando nem sequer existiam poemas.
O mesmo. Mas até quando
ou ainda no esquife serei o de agora?

Carrego a ternura como um vaso de flores
trazido dos lugares da infância
(a terra apodrecida, as raízes malcheirosas).
Digo a ternura com um hálito de palavras mortas,
mas não importa — tenho-a aqui,
sinto-a embotando os meus olhos durante a visão
de uma centena de negros acorrentados;
zune-me aos ouvidos como um festim
de vidas destroçadas — os passos
somam-se aos ecos da tarde,
há prolongados cantos de pássaros
roucos, terrenos, baldios
e casas desabitadas à espera
de um homem e seu método.

Pálido poema das noites brancas
apenas entrevistas por rendas rasgadas:
és tão lívido, faltam-te riquezas.
Até o sol surge como os centavos
esquecidos nos bolsos do casaco puído:
paga-me uma garapa nas tardes de sábado
ou é a esmola que dou a um esfomeado
com ridícula certeza de ser bom.

 

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▪ Daniel Francoy
( Brasil 🇧🇷 )
in “Identidade”, Editora Urutau, S. Paulo, 2016

 

CONDOMÍNIOS FECHADOS

Os condomínios fechados erradicam
as tabacarias diante das janelas
e os horizontes de becos à beira-mar.
Os prédios repetem-se, as sombras
parecem-se: são todas de homens.
Os gestos imitam-se e não há
mistério no mofo que se alastra
pelas paredes — provavelmente
foi um cano que se rompeu
e o zelador está sempre pronto.
O tempo não sangra. O instante
não alcança a crise: cristaliza-se,
multiplica a luz, os dias —
sou o de ontem, desde sempre.
Diante de qual parede esperar
a porta que não irá se abrir?
Se os menos isso fosse claro.
Onde a criança que como chocolates?
Estão todos mortos, alheios, opacos.
São todos o universo a cair
sobre mim com um terror de fábula
infantil: leio sobre nebulosas,
sobre o brilho infindo dos quasares
e que jamais existiu um tempo
antes do tempo e então olho para o corpo
que ao lado dorme e penso
é mentira que exista amplidão maior
do que a do dia poeirento.
A noite continua. Queria
o meu coração fora de mim, apaziguado
como o gato defronte à janela
que dorme junto aos cactos.

 

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▪ Daniel Francoy
( Brasil 🇧🇷 )
in “Identidade”, Editora Urutau, S. Paulo, 2016