RECENSÃO

 

P. I. M.
( POEMAS DE INTERVENÇÃO E MANICÓMIO ) | Maria Azenha

 

Ao ler este novo livro de poesia de Maria Azenha, em que a autora identifica, o mundo actual como um manicómio, apresentando-se ela própria como possessa de loucura, numa linguagem essencialmente surrealista, que domina com invenção e beleza, lembrei-me daquela opinião crítica que o modernismo, ou melhor, o futurismo do Orpheu motivara, apadrinhada, até, pelo eminente académico Júlio Dantas: Literatura de Manicómio. Vivemos, hoje, quase um século depois destes vanguardismos. Após o Concretismo dos anos 60, dificilmente vejo no horizonte poético português mais ousadias. Maria Azenha não foi além da Escola de Bréton e de Césariny, na forma (muito agradavelmente clássica, por vezes), mas traz-nos a novidade do seu retrato poético, com traços panfletários mas autênticos, fascinante de pensamento, rico de sortilégios, onde, até, o simbolismo de Camilo Pessanha espreita e encanta.

Recenseador: António Couto Viana, 1999
in ” Leitura Gulbenkian”

AZUIS I

 

Óleo s/ tela – Maria Azenha

 *

Não me perguntem nada sobre o pano de fundo das minhas obras.
Apenas uso cores para descrever o que está a acontecer na minha mente ou no meu coração.
Deixo as cores fazerem o seu trabalho e sei que sou apenas um instrumento.

AS NOSSAS MÃES

As nossas mães costuram galáxias
com olhos pintados de negro e lábios vermelhos.
Às vezes viajam em aviões de fogo
sobre ruínas em chamas. E ardem em vulcões.

As nossas mães olham-nos de um pomar branco
dentro de estrelas alvas. Correm como gazelas
num espelho incansável.
Ouvem-se mil passos velozes. E
o seu coração está coberto de pedras preciosas.

Deus está atrás delas.

Um anjo sangra,
até que chegue a primavera.

 

▪ Maria Azenha
( Portugal 🇵🇹 )
in “A Casa da Memória”

NÚBIO INVERNO DE LÁGRIMAS

Noite violácea e chuvosa.
Chove – as gotas, grossas e pesadas – sem cessar.
Os vidros do quarto estão todos embaciados.
O exílio interior é o nosso refúgio.
Fugimos com medos, passamos a percorrer labirintos.
Cá dentro, o frio em mil pedaços.
Chove.
Chove.
A criança que abusaste, num esconderijo,
nunca a tiveste, Padre.
Chove.
Chove.

Não conheço justiça que te liberte.

 


▪ Maria Azenha
( Portugal 🇵🇹 )
in “A Casa da Memória”

 

A viagem do artífice de Poesia


«Vivemos em cidades, em ofícios, em famílias. Mas o lugar
onde vivemos em verdade não é um lugar.”

C. Bobin

 

O ser humano busca reunir, unir, integrar a parte material do seu ser à sua contraparte espiritual. O processo inicia-se através de uma Viagem pelo Mundo da Criação, executada no plano da Dualidade. Cronos é o seu tempo, um tempo destronado. Os Antigos consideravam que a Viagem era realizada num tempo circular- um tempo sagrado- simbolizado pela serpente que morde a sua própria cauda, o Ouroboros. O Viajante prosseguirá e subirá à Montanha, à Sabedoria primordial.

Louis Claude Saint- Martin escrevia: “não há nada mais comum do que os desejos e nada mais raro do que o Desejo”. Este Desejo que não é um impulso instintivo, antes, uma emoção irresistível que provém do coração do homem, no sentido de retornar ao seio de Si- ao Coração. O Amor, parceiro da Viagem do Conhecimento, pede que a Alma, a noiva do Cântico dos Cânticos, utilizando a Via que lhe compete, descubra e reconheça o seu Mestre Interior e se funda com ele: a Alma unindo-se a Sophia.

***

Não te aproximes deste poema
No centro tem uma romã
Foi desenhado com uma esfera de silêncio

Dentro queima
Até que Deus queira destruir-lhe o Som.

***

Amor, aceita este meu horto de sangue.
Plantei-o com romãzeiras e o alaúde da minha língua.

***

Vi na tua boca uma estrela de seis pontas.

Ardia num fruto da romãzeira.
E tu vieste de noite ao meu encontro.

***


▪ Maria Azenha
( Portugal 🇵🇹 )
In “ A Sombra da Romã”, Poesia, “Apenas livros”, Colecção Naturarte