Eu tenho de nação ideias desmembradas,
comungo do ranger de dentes
com os vizinhos,
comungo de açularem
os perros uns contra os outros,
mas não eu contra todos,
só contra alguns,
e mesmo assim
isolo-me no bosque do silêncio,
fujo para esta folha,
os cães ficam lá fora.
No entanto, eu que empunhei o fogo
sem Deus se ter lembrado
de chamar a águia,
quando os sinos e as sirenes
soarem a rebate, terei de ir,
o fígado desfeito por cirroses
somadas de desgosto,
embora aos meus vizinhos
pouco falte para se armarem
nos conflitos de bairro,
em defesa do quarto e da cozinha.
No fundo, sei que sou o tempo,
as minhas coordenadas e as alheias,
e daí que haja tempo para tudo,
um tempo para a paz,
um tempo para a vida,
um tempo para a guerra e para a morte,
um tempo para ser-se tudo e nada
ao mesmo tempo, a pele dos outros
que desvisto com suma falta de piedade.
Daí que não acredite em maiorias.
As maiorias são volúveis,
fácil é comprar-lhes
a consciência e o nome da rua,
e agora os estrangeiros chegam,
estendem as metástases,
ocultam lentamente o sol,
e os olhos de tal gente
tornam-se mortiços e cegam.
Somente um genocídio podia convencê-la
de que havia um reduto aqui
e não sei se acreditava,
tantas formas há de se confiscarem
as cidades, os campos, os mosteiros,
os palácios, a Língua,
um longo rol de fábricas,
a energia dos rios e do vento,
milhões de vozes
que constroem o amor
a partir de satélites,
e ninguém se interessa:
é pouco provável
que os estrangeiros entrem numa aldeia
ou assolem as ruas suburbanas
e sejam invisíveis,
embora não se vejam.
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▪ Nuno Dempster
(Ponta Delgada, n. 1944)
in “Uma paisagem na web”, Editora &etc, Lisboa, 2013