Havia o bule a tarde o postigo

Havia o bule a tarde o postigo
(um sobrolho nocturno a sonam-
bular pela casa) os bêbados e os
loucos na taberna sempre bêbados
e sempre loucos a sonambularem
pela passagem de nível enquanto lhes
perdurasse a loucura e a bebedeira
de que nunca se curavam. Havia azeite
nas lamparinas naperons de renda e
mandalas bordadas flores murchas em
salobras jarras de água centros de mesa
e o teu sobrolho-postigo (centro de tudo)
a darem para a linha do comboio. Havia
a cancela que subia e descia consoante
as vogais das máquinas campainhassem
a desoras. Havia os carrinhos de rolamentos
(havia descarrilamentos) a guiarem sozinhos
empurrados pelo vento distraído ao volante.
Não havia o verso___ havia o inverso__ o
avesso do poema. Havia o teu lenço negro
(havia tudo em ti negro) e o teu xaile sobre
o espaldar oblíquo das costas. Havia um
arquipélago de réplicas de santos e santas
processo de multiplicar idades
de entardecer o rosto num
crescendo cujo auge se situa
prestes ao raiar do fim. A tarde
cinde noite e dia __meio-termo
sem término sem fim sem terminação. A
tarde: infância da noite que determina
a feição da claridade ___noite rubra a
amadurecer no cavo fusco da lareira. A
tarde à beira-lume: destroço da manhã.

 

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▪ Miguel Alexandre Marquez
(Portugal 🇵🇹)
in “Anuário de Poesia de autores não publicados”, Assírio & Alvim, 2015

░ na lavoura os pais

na lavoura os pais
à semeia das mães
joeiram os filhos de
envolta com o grânulo
cereal lábios de sangue
escorrido entre as pernas
ânforas de vinho nunca
antes bebido traçado às
escuras em cochos curtidos
contendo o mênstruo doce
dos áceres no interior líquido
o estame amputado cerca
ao bojo regaço das mães
enquanto elas ausentes
amamentam os filhos por
abortar nos embriões da
terra o útero a céu aberto
os filhos enjeitados à feiura
à magreza triste dos cães
rente ao bordo das cantareiras
donde se vislumbram defronte
os cancros tumores brotando
ao dependuro das árvores
das tardes doentes mais as
velhas nos janelos a espreitar
cá para fora com os rostos
caiados de morte e uns olhos
póstumos a anteverem o fim.

 

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▪ Miguel Alexandre Marquez
(Lisboa, n. 1979)
in “Coda”, Editora Língua Morta, Lisboa, 2016

░ as velhas novembram

as velhas novembram
de outubro a dezembro
em fainas novenas
varejam os ramos com
membros canhestros
erguem-se às hastes à
cata do fruto à flor da
ramagem sacodem-na
pra panos cerzidos
desde dezembro anterior
nos janeiros da apanha
colocam-nos ao chão
no plinto das árvores
os panos ao ombro as
talhas de azeite medas
de feno ou serapilheira
as velhas janeiram quais
espantalhos siderados
em pássaros moveres.

 

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▪ Miguel Alexandre Marquez
(Lisboa, n. 1979)
in “Coda”, Editora Língua Morta, Lisboa, 2016