Está em todos os jornais, cotação do
dólar, temperatura Fahrenheit, vítimas
da cólera (soma e segue, para trás,
apenas as últimas semanas dos últimos séculos).
Há um estado de emergência, e se andam à nossa procura
é porque não fazemos parte desta podridão.
É o rancor de não haver remédio, de não saber
que verbos inventavas de boca para cima quando nos desfazíamos
só para voltarmos a refazer-nos, e aceitávamos, porque éramos dois,
o desafio.
Quão difícil, na tenacidade
do contágio, ser o último casal da terra:
aqui somos o assunto de muitíssimas pessoas
que comunicam por sinais, por telefone, que espiam
às portas, que retiram os letreiros, que tocam
para o quarto andar, que nos gritam que abandonemos
o barco em que nos salvávamos, e nos afundemos
num outro, aos poucos, abraçando-nos
gastando-nos, até os nossos ossos tocarem os nossos ossos.
Depois foste a horizontal leoa quieta.
Eu dedicava-me ao meu trabalho: voltar a pôr-te,
como se fosse uma meia, o esquecimento que a noite te roubou
e a ternura que às vezes não encontravas
entre os outros que não te diziam respeito.
Mas a carreta veio buscar-te, com seus cavalos regulamentares
e levou-te, finalmente contaminada, finalmente caída,
oh minha louca de sémen, transformada em senhora honrada
ou dama morta, e o cimento implacável
das boas maneiras vai tapando as tuas enseadas
e há um corvo fúnebre em tua memória. Como foste capaz?
Se estivéssemos no meu país, poderíamos
pelo menos chorar, pôr um disco, gozar com
o governo, mas aqui não há ninguém
para nos fazer rir ou dar-nos de beber no teu velório.
Mas então a morte já não vale a pena.
Talvez esteja fora de moda.
(Também a vida, nesta aldeia grega).
_
▪ Jorge Enrique Adoum
( Equador 🇪🇨 )
in “El tiempo y las palabras”, Editoriaĺ Libresa, Quito – Ecuador, 1992
*
Mudado para português por — Maria Soledade Santos 🇵🇹 Poeta, tradutora e professora.
Nasceu em 1957, no Sabugal. Publicou “Quatro Poetas da Net” (Edições Sete Sílabas, 2002) e “Sob os teus pés a terra” (Artefacto vertente editorial da Cossoul, 2011); participou em “Divina Música”, Antologia de Poesia sobre Música, Viseu, 2010.
RECADO DE LA PESTE
312. Está en todos los periódicos, cotización
del dólar, temperatura Fahrenheit, víctimas
de cólera. (Suma y sigue, para atrás,
las últimas semanas de estos siglos solamente).
Hay estado de emergencia y si nos buscan
es porque no somos de esta podredumbre.
Es el rencor de no tener remedio, de no saber
qué verbos inventabas boca arriba cuando nos deshacíamos
sólo para rehacernos, y aceptábamos, porque éramos dos,
el desafío.
Qué difícil, en la tenacidad
de su contagio, ser la última pareja de la tierra:
aquí ambos somos asunto de muchísimas personas
que se entienden por señas, por teléfono, espían
por las puertas, descuelgan los letreros, llaman
al cuarto piso, gritan para que abandonemos
el barco en que nos salvábamos hundiéndonos
en el otro por mitades, gastándonos abrazándonos
hasta que toquen nuestros huesos nuestros huesos.
Después ya fuiste la horizontal leona quieta.
Yo estaba entregado a mi trabajo: reponerte
como una media el olvido que te quitó la noche
y la ternura que a veces no encontrabas
entre las otras tú que no te incumben.
Pero vino la carreta por ti, con caballos legales,
y te llevó, al fin contaminada, al fin caída,
oh mi loca de semen, en señora honorable
o dama muerta, y el cemento implacable
de las buenas costumbres va tapiando tus abras
y un cuervo funeral en tu memoria. Cómo puedes.
Si estuviéramos en mi país podríamos
por lo menos llorar, poner un disco, carajear
al gobierno, pero aquí no queda nadie
para darnos de reír o de beber en tu velorio.
Pero entonces la muerte ya no vale la pena.
Quizá la muerte es algo que ya pasó de moda.
(También la vida, en esta aldea griega).
_
▪ Jorge Enrique Adoum
( Ecuador 🇪🇨 )
in “El tiempo y las palabras”, Editoriaĺ Libresa, Quito – Ecuador, 1992