VERTIGEM

Nem sempre sou brava ou forte
Há dias que entra água na primeira palavra
confundo o Sul com o Norte
perco-me no rés do chão

Há dias em que o mundo é um caminho
é um camião que me passa
atravessado na garganta
Há dias em que tudo o que preciso é uma manta

Nem sempre sou brava
nos mais altos dos céus as palavras parecem ocas
e algo se torna mais real
salto com um amargo na boca
numa paisagem feita de sal

Nem sempre sou forte
os sonhos nascem rareados
com pouco pelo, desfiados
nos novelos dos dias nublados

nos hálitos das segundas terças feias
que embaraçam as teias
e me tornam menos humana

Há dias que me levam
arrastada pela semana
em que a dor desce dum salto
no elevador estragado
num passo mal dado
a descer um degrau
a baixar a temperatura

Olha o degrau
Olha o degrau

Esfolo o joelho a caminhar
com a sede de suar

Há dias que me passa o barco
e a vontade de remar

Nem sempre sou brava
a água entra na primeira
e na última palavra
e nem sempre sou forte
confundo o Sul com o Norte
perco-me no rés do chão

Há dias assim
em que as rimas me saltam da mão
e todas as sílabas sabem a tónicas
desequilibradas no receio
de nunca mais conseguir beber um poema inteiro

 

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▪ Alice Neto de Sousa
( Portugal 🇵🇹 )