Tenho vergonha de estender o braço
para chamar o táxi
tenho medo que ele me veja
tenho medo que ele me veja
e ainda assim
não pare.
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▪ Ana Cristina César
(Brasil 🇧🇷 )
Tenho vergonha de estender o braço
para chamar o táxi
tenho medo que ele me veja
tenho medo que ele me veja
e ainda assim
não pare.
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▪ Ana Cristina César
(Brasil 🇧🇷 )
Houve um tempo em que minha janela se abria
sobre uma cidade que parecia ser feita de giz.
Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.
Era uma época de estiagem, de terra esfarelada,
e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde,
e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas.
Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse.
E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas.
Avisto crianças que vão para a escola.
Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega.
Ás vezes, um galo canta.
Às vezes, um avião passa.
Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino.
E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas,
que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem,
outros que só existem diante das minhas janelas, e outros,
finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.
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▪ Cecília Meireles
(Brasil 🇧🇷 )
Sou composta por urgências:
minhas alegrias são intensas;
minhas tristezas, absolutas.
Entupo-me de ausências,
Esvazio-me de excessos.
Eu não caibo no estreito,
eu só vivo nos extremos
Pouco não me serve,
médio não me satisfaz,
metades nunca foram meu forte!
Todos os grandes e pequenos momentos,
feitos com amor e com carinho,
são pra mim recordações eternas.
Palavras até me conquistam temporariamente…
Mas atitudes me perdem ou me ganham para sempre.
Suponho que me entender
não é uma questão de inteligência
e sim de sentir,de entrar em contato…
Ou toca, ou não toca.
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▪ Clarice Lispector
(Brasil 🇧🇷 )
Não há silêncio bastante
Para o meu silêncio.
Nas prisões e nos conventos
Nas igrejas e na noite
Não há silêncio bastante
Para o meu silêncio.
Os amantes no quarto.
Os ratos no muro.
A menina
Nos longos corredores do colégio.
Todos os cães perdidos
Pelos quais tenho sofrido
Quero que saibam:
O meu silêncio é maior
Que toda solidão
E que todo silêncio.
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▪ Hilda Hilst
(Brasil 🇧🇷 )
devagar se vai longe
mais perto de deus o ateu
do que o monge
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José Paulo Paes
(Brasil 🇧🇷 )
Olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas.
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▪ Ana Cristina César
( Brasil 🇧🇷 )
Dividamos o mundo em duas partes iguais:
uma para portugueses, outra para espanhóis.
Vêm quinhentos mil escravos no bojo das naus:
a metade morreu na viagem do oceano.
Dividamos o mundo entre as pátrias.
Vêm quinhentos mil escravos no bojo das guerras:
a metade morreu nos campos de batalha.
Dividamos o mundo entra as máquinas.
Vêm quinhentos mil escravos no bojo das fábricas:
a metade morreu na escuridão, sem ar.
Não dividamos o mundo.
Dividamos Cristo:
todos ressuscitarão iguais.
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▪ Jorge de Lima
( Brasil 🇧🇷 )
Eu vim aqui e soube imediatamente
que alguma coisa iria acontecer comigo
eu não sei o quê
porque tem dias na vida da gente
que a gente é capaz de perder tudo
perder a carteira
perder os documentos
perder o ônibus para casa
perder a casa
perder a mulher que estava dentro dela
perder o pai
perder a mãe
perder o filho
tem dias em que você é capaz de perder tudo
só que nesses dias você não percebe
que você pode começar a ganhar alguma coisa
porque quando você sempre ganha tudo
você não sabe
você não sabe o que está perdendo
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▪ Tavinho Paes
( Brasil 🇧🇷 )
Há tantas maneiras de dizer o desperdício
de uma noite: aquela em que dormimos
cedo demais, aquela em que dormimos
menos do que deveríamos, aquela em que
ficamos em casa e aquela em que
não mais sabíamos como regressar.
A noite atravessada de palavras, uma
depois da outra, cruéis, estéreis,
a noite rígida dentro do silêncio,
a noite solitária, e aquela em que a presença
humana é uma mácula, a madrugada
rendida ao desespero de uma prece
ou a noite órfã, sem deus, fora do tempo.
As noites de álcool e nicotina, de covardias
perante o tédio, de um torpor pantanoso,
em que não foi possível apagar as luzes,
em que caímos na cama com as roupas sujas,
ou nus e sonâmbulos – noites de ambulâncias,
de gritos, de um eco de garrafa
que se quebra. As primeiras noites
e as últimas, quando adormecemos
com um livro na mão, ou aquelas
em que compreendemos o que antes era
suspeita: ver o que aparece no espelho
quando não há ninguém diante dele
e não saber o que fazer com isso.
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▪ Daniel Francoy
( Brasil 🇧🇷 )
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