AR DO TEMPO

Nuvem
Ergue-se um cavalo branco
E é madrugada na estalagem onde despertará o
primeiro que aparecer
Vais andar a vadiar no meio da gente a vida inteira
Semi-morto
Semi-adormecido
Não estás farto dos lugares comuns
As pessoas olham-te sem se rirem
Têm olhos de vidro
E tu passas
Perdes o teu tempo
Passas
Contas até cem e fazes batota para matar mais dez segundos
Estendes bruscamente o braço para morrer
Não tenhas medo
Mais tarde ou mais cedo
Só haverá mais um dia e a seguir um dia
E depois pronto
Nunca mais será preciso ver os homens nem esses abençoados
bichinhos que eles afagam de quando em vez
Nunca mais será preciso falar sozinho durante a noite
para não ouvir o lamento da lareira
Nunca mais será preciso abrir as minhas pálpebras
Nem lançar o meu sangue como um disco
Nem respirar sem ter vontade disso
Contudo não desejo morrer
O sino do meu coração canta em voz baixa uma
uma esperança muito antiga
Esta música
Bem sei
Mas a letra da canção
Que dizia a letra ao certo
Imbecil


▪ Louis Aragon
( França 🇨🇵 )
Mudado para português por Regina Guimarães

INÚTIL COMO A CHUVA

Aceitaria de bom grado esta crítica sobre a poesia: a poesia é inútil como a chuva.

Há poetas que são como esses macacos que têm prazer em sacudir árvore para lhe fazer cair os frutos, imitando assim o gesto sagrado do homem.

As palavras são como a olaria de renome, extremamente porosa, donde a água se escapa misteriosamente. Tome-se uma palavra e revista-se-lha da matéria inflamável da alma.

O poeta não deve fazer esquecer o homem, mas o homem o poeta.

Alguns poetas não fazem a sua obra senão através dos vidros. Natural que a sua obra nos apareça muitas vezes maculada de caganitas de moscas.

A inspiração é a contra-inteligência do poeta, o agente secreto.

Come a tua mão. Guarda a outra para amanhã.

Escreve-se primeiro para nos conhecermos, depois para nos reconhecermos, enfim para nos desculparmos.

Uma poesia que perde a sua virgindade: é o que está certo Uma poesia que a reencontra: é ainda melhor.

Alguns poetas não vêem na poesia senão um fait-divers, ou uma beleza puramente anedótica. É colocar-se exactamente na situação do ladrãozeco de molas de roupa que marche, as mãos algemadas, entre dois polícias.

Preferirei sempre uma destruição de génio a uma construção comedida.

Ele há sempre um divórcio entre a poesia do momento e o público do momento.

Toda a poesia que corre de raiz lança-se no mar, tende-se a juntar-
se ao universal.

Quanto mais o poeta se aproximar da terra mais ele será aéreo, mais ele tenderá a desconfiar da fadiga dos seus músculos.

Uma poesia que não fizer apelo senão à meditação arrisca-se, ao fim de uns anos a patinar no vazio, pois todas as grandes batalhas foram sempre lutas de movimento.

Eu não sou militar de carreira. Eu não me bato por nenhum soldo, por nenhuma patente, por nenhuma pátria. Nem mesmo pela poesia: eu defendo a minha pele.

O tempo que me é dado, que o amor o prolongue.

 


▪ René Guy Cadou
(França 🇨🇵)
Mudado para português por António Cabrita

a estátua e eu

Nos meus tempos mortos, ensino uma estátua a andar. Dada a sua imobilidade exageradamente prolongada, não é nada fácil. Nem para ela. Nem para mim. Dou-me conta de que uma grande distância nos separa. Não sou tão imbecil que não me dê conta disso.

Mas não se pode ter todas as boas no nosso jogo. Ou então, adiante.

O que interessa é que o seu primeiro passo seja bom. Para ela, tudo reside nesse primeiro passo. Bem sei. Sei disso muito bem. Daí a minha angústia. Por conseguinte, aplico-me. Aplico-me como jamais o fiz.

Coloco-me junto dela de modo rigorosamente paralelo: o pé, como ela, levantado e rígido tal estaca enterrada na terra.

Porém nunca é exactamente igual. Ou o pé, ou a curva, ou o porte, ou o estilo, há sempre qualquer coisa que falha e o tão esperado arranque não pode ter lugar.

É por isso que cheguei a um estado em que eu próprio já quase não consigo andar, tomado de uma rigidez, todavia toda feita de impulso, e o meu corpo fascinado faz-me medo e já não me leva a parte nenhuma.

_

▪ Henri Michaux
( Bélgica 🇧🇪 )
Mudado para português por Margarida Vale de Gato

O SILÊNCIO

Tu não terás outra morada senão teu coração;
Pois sobre a Terra, onde somos viajantes,
Ninguém construirá sua morada permanente:
Tu não terás outra morada senão teu coração.
Então, ao redor dele, na atmosfera ardente,
Que nasce dele, que o envolve e que aspira
Todos os raios vindos das coisas que ele deseja,
Evoca o silêncio e o divino silêncio;
A forma que reveste a primeira hipostase,
Obedecendo a quem a espera com poder,
Levar-te-á sobre as quatro asas do êxtase.
A vida interior é feita de silêncio.
Ela é o palácio cuja base é o silêncio.
Ela é a flor de fogo: o silêncio é o vaso,
O silêncio é o vaso onde bebes a beleza.
Tu que aqui passas, é certo, mas indeciso
Entre tua vida real e tua vida aparente,
Tua vida real, tenebrosa e veemente
Como a paixão, o trovão e a morte,
Cobre com um véu de sombra e de noite o tesouro
Dessa vida interior, que mede
Entre tuas almas a melhor e a mais pura,
A fim de que nada atente contra seu mistério intenso,
E que sua força virgem, integral, se empregue
A vestir a ocupação em que as mãos do silêncio
Se incumbirão de tecer o tecido da tua alegria.

 


▪Victor-Émile Michelet
( França 🇨🇵 )

 

LI POR CRISES

Li por crises. Algumas duraram dois anos. Nesses casos, era obrigada a ler de dia nas grandes bibliotecas universitárias de Paris. É caso para perguntar por que aberração as grandes bibliotecas públicas estão fechadas de noite. Raramente li em praias e jardins. Não se pode ler com duas luzes simultâneas, a do dia e a do livro. Lê-se à luz eléctrica, com o quarto na penumbra, apenas a página iluminada.

 

▪Marguerite Duras
(Vietname 🇻🇳 )
in “O Mundo Exterior”
Tradução de Clarisse Tavares

OS GRANDES DIAS DO POETA

Os discípulos da luz apenas inventaram trevas pouco opacas.
O rio empurra um pequeno corpo de mulher e isso significa que
o fim está próximo.
A viúva em trajo de núpcias engana-se de escolta.
chegaremos todos atrasados ao nosso túmulo.
Um navio de carne atola-se numa pequena praia. O timoneiro
convida os passageiros a calarem-se.
As vagas esperam impacientemente. Mais perto de Ti ó meu Deus!
O timoneiro convida as ondas a falar. E elas falam.
A noite sela as suas garrafas com estrelas e faz fortuna na
exportação.
Constroem-se grandes feitorias para vender rouxinóis.
Mas não podem satisfazer os desejos da Rainha da
Sibéria que quer um rouxinol branco.
Um comodoro inglês jura que nunca mais será apanhado a colher salva
durante a noite, entre os pés das estátuas de sal.
A propósito, um pequeno saleiro levanta-se a custo em equilíbrio sobre as suas finas pernas. No meu prato ele verte aquilo que me resta viver.
Quanto basta para salgar o Oceano Pacífico.
Colocai no meu jazigo uma bóia de salvação.
Porque nunca se sabe.

 


▪ Robert Desnos
( França 🇨🇵 )
in “Sonhador definitivo e perpétua insónia”, Editora Contracapa, 2021
Mudado para português por _ Regina Guimarães