PRÉMIO

Em 72 recebi
o prémio literário
dos pensos rápidos Band-Aid
o prémio foi uma bicicleta
às vezes penso
que me deram uma bicicleta
para eu cair
e ter de comprar pensos
rápidos
Band-Aid
é o que penso dos prémios literários
em geral

 

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▪ Adília Lopes
(Portugal 🇵🇹)
in “Clube da Poetisa Morta”, Black Sun Editores, Lisboa, 1997

MORDISCA-ME OS LÁBIOS

Mordisca-me os lábios
cão pássaro rapaz
(não quero que te vás embora
e sei que vais ter de te ir embora)
quero dormir contigo
com a tua mão
sobre o meu coração
para que saibas
os meus segredos
beliscas-me ao de leve
eu sei que não é um sonho
mas é como um sonho
para mim

 

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▪ Adília Lopes
( Portugal 🇵🇹 )
in “Dobra” (Poesia Reunida 1983 – 2007)

UM FIGO

Deixou cair a fotografia
um desconhecido correu atrás dela
para lha entregar
ela recusou-se a pegar na fotografia
mas a senhora deixou cair isto
eu não posso ter deixado cair isto
porque isto não é meu
não queria que ninguém
e sobretudo um desconhecido
suspeitasse que havia uma relação
entre ela e a fotografia
era como se tivesse deixado cair
um lenço cheio de sangue
porque era ela quem estava na fotografia
e nada nos pertence tanto como o sangue
por isso quando uma pessoa se pica num dedo
leva logo o dedo à boca para chupar o sangue
o desconhecido apercebeu-se disso
é um retrato da senhora
pode ser o retrato de alguém muito parecido comigo
mas não sou eu
o desconhecido por ser muito bondoso
não insistiu
e como sabia que os mendigos
não têm dinheiro para tirar fotografias
deu a fotografia a um mendigo
que lhe chamou um figo

 

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▪ Adília Lopes
( Portugal 🇵🇹 )

Os namorados pobres

O namorado dá
flores murchas
à namorada
e a namorada come as flores
porque tem fome

Não trocam cartas
nem retratos nem anéis
porque são pobres

Mas um dia
têm muito medo
de se esquecerem
um do outro
então apanham
um cordel
do chão
cortam o cordel
com os dentes
e trocam alianças
feitas de cordel

Não podem
combinar encontros
porque não têm
número de telefone
nem morada
assim encontram-se
por acaso
e têm medo
de não se voltarem
a encontrar

O acaso
não os favorece

Decidem nunca sair
do mesmo sítio
e ficarem sempre juntos
para não se perderem
um do outro

Procuram um sítio
mas todos os sítios
têm dono
ou mudam de nome

Então retiram
dos dedos
os anéis de cordel
atam um anel
ao outro
e enforcam-se

Mas a namorada
tem de esperar
pelo namorado
porque o cordel
só dá par um
de cada vez

O namorado
descansa à sombra
da figueira
e a namorada
baloiça
na figueira

O dono da figueira
zanga-se
com os namorados pobres
porque julga
que estão a roubar figos
e a andar de baloiço

 

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▪ Adília Lopes
(Lisboa, n. 1960)
in “Dobra” Poesia Reunida, Assírio & Alvim, Lisboa, 2009

NO MORE TEARS

Quantas vezes me fechei para chorar
na casa de banho da casa da minha avó
lavava os olhos com shampoo
e chorava
chorava por causa do shampoo.
depois acabaram os shampoos
que faziam arder os olhos,
no more tears disse Johnson & Johnson.
as mães são filhas das filhas
e as filhas são mães das mães.
uma mãe lava a cabeça da outra
e todas têm cabelos de crianças loiras.
para chorar não podemos usar mais shampoo
e eu gostava de chorar a fio,
e chorava,
sem um desgosto sem uma dor sem um lenço
sem uma lágrima,
fechada à chave na casa de banho
da casa da minha avó,
onde além de mim só estava eu.
também me fechava no guarda-vestidos grande
mas um guarda-vestidos não se pode fechar por dentro
nunca ninguém viu um vestido a chorar.

 

▪ Adília Lopes
( Portugal 🇵🇹 )