Para os outros a bola era a meia

Para os outros a bola era a meia
altura, mas a ti batia-te na cara.
E ias muito zangado para dentro
de casa como se eu tivesse feito
de propósito e te tivesse atirado
a bola à cara. Eu era lá capaz de fazer
uma coisa dessas, também já fui
muito pequenino, sabes, chegaram
a levar-me ao psiquiatra, eu não
ia fazer uma coisa dessas. Quando
me apetece atirar a bola contra
alguém, atiro-a contra uma parede
ou uma árvore. O problema
é que nem sempre acerto na árvore
(na parede acerto sempre, porque
é grande) e às vezes, sem querer,
estás a ouvir, sem querer, acerto
em alguém que vai a passar.

 

_

▪ Helder Moura Pereira
( Portugal 🇵🇹 )
in “Eu Depois Inventei o Resto”, Companhia das Ilhas, Açores, 2013

ESCREVIAS PELA NOITE FORA

Escrevias pela noite fora. Olhava-te, olhava
o que ia ficando nas pausas entre cada
sorriso. Por ti mudei a razão das coisas,
faz de conta que não sei as coisas que não queres
que saiba, acabei por te pensar com crianças
à volta. Agora há prédios onde havia
laranjeiras e romãs no chão e as palavras
nem o sabem dizer, apenas apontam a rua
que foi comum, o quarto estreito. Um livro
é suficiente neste passeio. Quando não escreves
estás a ler e ao lado das árvores o silêncio
é maior. Decerto te digo o que penso
baixando a cabeça e tu respondes sempre
com a cabeça inclinada e o fumo suspenso
no ar. As verdades nunca se disseram. Queria
prender-te, tornar a perder-te, achar-te
assim por acaso no meu dia livre a meio
da semana. Mantêm-se as causas iguais
das pequenas alegrias, longe da alegria, a rotina
dos sorrisos vem de nenhum vício. Este abandono
custa. Porque estou contigo e me deixas
a tua imagem passa pelas noites sem sono,
está aqui a cadeira em que te sentaste
a escrever lendo. Pudesse eu propor-te
vida menos igual, outras iguais obrigações.
Havias de rir, sair à rua, comprar o jornal.

 

__

▪Helder Moura Pereira
( Portugal 🇵🇹 )
in “De Novo as Sombras e as Calmas”- Contexto, 1990