Ouviu-se longamente,
desde o fundo das cisternas,
um grito que arruinou para sempre os palácios
de vidro.
O príncipe cego acordou em sobressalto e com
um dedo em riste, trémulo,
assinalou o Oriente,
mas não disse nada.
Muito perto,
nos aposentou de cetim e almíscar,
sob os tectos de âmbar,
as concubinas continuaram a dormir, a dormir
profundamente,
como só acontece com as amantes cujo corpo
saciado
esquece as amargas horas do mundo.
Eram belas assim,
deitadas,
acariciando o cofre onde guardavam as jóias:
crescentes em ouro, anéis,
pulseiras onde se reflectia o brilho de Lira e
Andrómeda,
pérolas que rodeavam as suas gargantas escuras,
e desciam para a inclinação dos seios.
Era uma vida lenta, uma vida pura.
Havia uma interminável música de alaúdes nos
longínquos lugares do sono.
Sobre os animais do deserto,
viajavam outros príncipes, também cegos pelo
desejo
que começava nos oásis do Levante.
As tâmaras eram esmagadas pela ferocidade
dos dentes.
Vénus nascia muito cedo quando olhavam para
o seu lado esquerdo.
Mais tarde,
tambores incessantes cercavam as fogueiras.
Os turbantes brancos davam aos seus vultos a
placidez do algodão e das estátuas.
Era uma vida lenta, inspirada.
Encostado a uma palmeira,
o ancião das dunas interrogava Alá sobre os
segredos da lua cheia.
Mas os deuses não respondem aos homens que
contemplam a lua,
debaixo da sua morada.
Por vezes,
havia uma luz relampejante no aço das
cimitarras.
Por vezes,
o sangue corria como um pequeno rio vermelho,
através da areia,
purificado.
Era uma vida nómada, que passava.
Muito longe,
nos palácios em ruínas,
nos aposentos de cetim e almíscar,
sob os tectos de âmbar,
elas continuavam a dormir profundamente.
Eram apenas a carne, o sol, a serpente.
Eram apenas um corpo deitado, entreaberto.
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▪ José Agostinho Baptista
( Portugal 🇵🇹 )
in “Esta voz é quase vento”, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004