EU VI KAFKA NO QUARTO DE BRINQUEDOS

Eu vi Kafka no quarto de brinquedos
Conduzia um trem infinito
sobre trilhos que pareciam enguias
Debaixo da cama outra criança desarmava
uma lagarta fluorescente
A lagarta tinha o rosto de Kafka
também os móveis, os relógios
as paredes tinham seu rosto
as aranhas aborrecidas em suas teias
os brinquedos no quarto
O único que não tinha o rosto de Kafka
era o próprio Kafka cujo rosto
parecia uma página em branco.

 

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▪ Mario Meléndez
( Chile 🇨🇱 )
Mudado para português do brasil por _ Floriano Martins

Uma aula de desenho

O meu filho coloca a sua caixa de pintura à minha frente
E pede-me que lhe desenhe um pássaro.
Mergulho o pincel na cor cinzenta
E traço um quadrado com fechaduras e grades.
Os seus olhos enchem-se de surpresa:

“Mas isto é uma prisão, pai,
Não sabes desenhar um pássaro?

E eu digo-lhe: “Filho, perdoa-me.
Esqueci-me da forma dos pássaros.

O meu filho coloca o livro de desenhos à minha frente
E pede-me que desenhe uma espiga de trigo.

Pego num lápis
E desenho uma arma.

O meu filho desdenha da minha ignorância,
perguntando,
“Pai, não sabes a diferença entre uma espiga de trigo e uma arma?”
Eu digo-lhe: “Filho,
uma vez usei a forma da espiga de trigo
a forma do pão
a forma da rosa
Mas nestes tempos duros
as árvores da floresta juntaram-se
aos homens da milícia
e a rosa veste uniformes escuros

Neste tempo de espigas de trigo armadas
de pássaros armados
de cultura armada
e de religião armada
não se pode comprar pão
sem encontrar uma arma no interior
não se pode colher uma rosa do campo
sem que os seus espinhos nos arranhem o rosto
não se pode comprar um livro
que não vá explodir entre os nossos dedos.”

O meu filho senta-se à beira da minha cama
e pede-me que recite um poema
Uma lágrima cai dos meus olhos para a almofada.
O meu filho apanha-a, surpreendido, dizendo:

“Mas esta é uma lágrima, pai, não é um poema!”

E eu digo-lhe:

“Quando cresceres, meu filho,
e aprenderes o ‘diwan’ da poesia árabe
descobrirás que palavra e lágrima são gémeas
e que o poema árabe
não é mais do que uma lágrima chorada por dedos que escrevem.”

O meu filho pega nos seus pincéis,
a caixa de pinturas à minha frente
e pede-me que lhe desenhe uma pátria.

O pincel treme nas minhas mãos
e eu afundo-me, chorando.

 

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▪ Nizzar Qabbani
(Síria 🇸🇾)
Mudado para português por Paulo Farah

 

O MESTRE

Onde o poeta pára, o poema
começa. O poema só pede
que o poeta saia do caminho.

O poema se esvazia
para se preencher.

O poema está mais perto do poeta
quando o poeta lamenta
que ele sumiu para sempre.

Quando poeta desaparece
o poema se torna visível.

Que pode o poema escolher
de melhor para o poeta?
Escolherá que o poeta
não escolha por si.

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▪ Donald Hall
(EUA 🇺🇲 )
Mudado para português do brasil por António Cícero

OS POBRES

Os pobres são muitos
e por isto
é impossível esquecê-los.

Seguramente
vêm
nos amanheceres
múltiplos edifícios
onde eles
queriam habitar com seus filhos.

Podem
levar nos ombros
o féretro de uma estrela.

Podem
destruir o ar como aves furiosas,
nublar o sol.

Porém desconhecendo seus tesouros
entram e saem por espelhos de sangue;
caminham e morrem lentamente.

Por isto
é impossível esquecê-los.

 

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▪ Roberto Sosa
(Honduras 🇭🇳)
Mudado para português por Floriano Martins

 

A TODOS OS JOVENS RECOMENDO

A todos os jovens recomendo:
que abram os livros com devoção,
e não lhes corram os olhos superficialmente,
porque neles está guardada
a coragem de nossos pais.
E que os fechem com dignidade
quando tiverem de se ocupar com outras coisas.
Mas, sobretudo, amem os poetas.
Eles escavaram por vocês a terra
por tantos anos, não para erigir tumbas,
ou estátuas, mas altares.
Pensem que vocês podem caminhar sobre nós
como fazem com grandes tapetes
e voarem para além desta triste realidade
quotidiana.

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▪ Alda Merini
( Itália 🇮🇹 )
Mudado para português por Nicole Alvarenga Marcello