Sobre a minha mãe

Não conseguiria nunca dizer nada sobre a minha mãe:
como ela repetia, vais arrepender-te um dia,
quando já cá não estiver e como eu não acreditava
nem no “não estiver” nem no “já não”,
como gostava de a observar quando lia os grandes êxitos,
começando sempre pelo último capítulo,
como na cozinha, convencida de que não era
lugar para ela, fazia o café dominical
ou, pior ainda, filetes de bacalhau,
como estudava o espelho enquanto esperava os convidados,
fazendo a cara que melhor a impedia
de se ver como era (nisto
e em mais umas tantas fraquezas saio a ela),
como falava demais sobre coisas
que não eram o seu forte e como eu estupidamente
a arreliava, por exemplo, quando
se comparava a Beethoven ao ficar surda
e eu dizia, cruelmente, mas sabes ele
era talentoso, como perdoava tudo,
como eu recordo isso e como, de Houston, fui de avião
ao seu funeral, fui incapaz de dizer uma palavra
e ainda hoje não consigo.

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▪ Adam Zagajewski
( Polónia 🇵🇱 )
Mudado para português por _ Francisco José Craveiro de Carvalho

OS MEUS MESTRES

 

Os meus mestres não são infalíveis.
Não se trata de Goethe, que só conseguia
adormecer quando ao longe
gemiam os vulcões, nem de Horácio,
que escrevia na língua dos deuses
e dos sacerdotes. Os meus mestres
pedem-me conselhos. Vestindo macios
sobretudos deitados velozmente
por cima dos sonhos, ao romper dia, quando o vento
fresco interroga os pássaros, os meus
mestres falam por sussurros.
Consigo ouvir a sua voz trêmula. 

 

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▪ Adam Zagajewski
( Polónia 🇵🇱 )
in “Sombras de sombras”, Tinta da China
Mudado para português por  Marco Bruno

O quarto do suicida

Vocês devem achar que o quarto estava vazio.
Pois havia ali três cadeiras de encosto firme.
Uma boa lâmpada contra a escuridão.
Uma mesinha, e sobre a mesinha uma carteira, jornais.
Um Buda alegre, um Jesus aflito.
Sete elefantes para dar sorte, e na gaveta um caderninho.
Você acha que nele não estavam nossos endereços?

Acham que faltavam livros, quadros ou discos?
Pois lá estava o trompete consolador nas mãos negras.
Saskia com uma flor cordial.
Alegria, centelha divina.
Na estante Ulisses num sono reparador
depois dos esforços do Canto Cinco.
Os moralistas,
seus nomes inscritos em letras douradas
nas lindas lombadas de couro.
Ao lado, também os políticos perfilados.

Não parecia que o quarto fosse
sem saída, pelo menos pela porta
nem sem vista, pelo menos pela janela.
Os óculos para longe largados no parapeito.
Uma mosca zunindo, ou seja, ainda viva.
Devem achar que ao menos a carta explicasse algo.
E se eu lhes disser que não havia carta –
éramos tantos os amigos e coubemos todos
no envelope vazio apoiado no lado do corpo.

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▪ Wisława Szymborska
( Polónia 🇵🇱 )
Mudado para português do brasil por Regina Przybycien

POR DENTRO

A caminho de tua casa para uma festa de amor
a uma esquina vi
uma velha pedinte.

Peguei-lhe na mão,
beijei-lhe a face delicada,
falámos,
por dentro era como eu,
a mesma natureza,
percebi logo isso
como um cão conhece outro
pelo cheiro.

Dei-lhe dinheiro,
não conseguia afastar-me dela.
No fim de contas, precisamos
de alguém que nos seja próximo.

E depois não sabia já
por que estava a ir para tua casa.

 

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▪ Anna Swir
( Polónia 🇵🇱 )
Mudado para português por Francisco Craveiro de Carvalho,a partir da tradução inglesa de Czeslaw Milosz & Leonard Nathan

Notícias do Paraíso

No paraíso a semana de trabalho é de trinta horas
os salários são elevados e os preços descem regularmente
o trabalho manual não é cansativo (devido à reduzida gravidade)
derrubar árvores não é mais pesado do que dactilografar
o sistema social é estável e as leis são sábias
na verdade no paraíso vive-se melhor do que em qualquer outro lado
A princípio era para ter sido diferente
círculos luminosos coros e graus de abstracção
mas não foram capazes de separar completamente
o espirito da carne de tal modo que quem chega
traz sempre uma gota de gordura uma fibra de músculo
foi necessário enfrentar as consequências
misturar um grão de absoluto com um grão de argila
mais um desvio da doutrina o ultimo desvio
só o apostolo João o entreviu: ressuscitaremos na carne
São poucos os que acreditam em Deus
isso é só para aqueles cem por cento pneuma
os outros ouvem os comunicados sobre milagres e dilúvios
um dia Deus revelar-se-á a todos
quando irá isso acontecer ninguém sabe

Como agora todos os sábados ao meio-dia
as sirenes tocam docemente
e das fábricas saem os proletários celestes
envergonhados debaixo ds braços carregam as suas asas como violinos

 

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▪ Zbigniew Herbert
( Polónia 🇵🇱 )
Mudado para prtuguês por Jorge Sousa Braga a partir da versão inglesa de Czeslaw Milosz

AMANHÃ, VOU SER OPERADA

A morte veio e ficou ao meu lado.
Eu disse: estou pronta.
Estou deitada numa cama da Clínica Cirúrgica de Cracóvia.
Amanhã
vou ser operada.
Há muita força em mim. Posso viver,
posso correr, dançar e cantar.
Tudo isso está em mim, mas se for necessário,
partirei.

Hoje
faço contas à minha vida.
Eu era uma pecadora,
batia com a cabeça contra a terra,
implorava à terra e ao céu
que me perdoassem.

Eu era bonita e feia,
sábia e estúpida,
muito feliz e muito infeliz,
frequentemente tinha asas
e flutuava no ar.

Percorri mil caminhos ao sol e na neve,
dancei com o meu amigo sob as estrelas.
Eu vi amor
em muitos olhos humanos.
Comi com prazer
a minha fatia de felicidade.

Agora estou deitada numa cama da Clínica Cirúrgica de Cracóvia.
Ela está comigo.
Amanhã
vão-me operar.
Pela janela as árvores de maio, lindas como a vida,
e em mim, humildade, medo e paz.

 

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▪ Anna Swir
( Polónia 🇵🇱 )
Mudado para prtuguês por Jorge Sousa Braga

(O poema foi escrito enquanto estava no leito da morte.)

MUDANÇA

Havia meses que não escrevia
nem um único poema.
Vivia com humildade, lendo os jornais,
pensando no enigma do poder
e nas causas da obediência.
Olhava para os pores-do-sol
(escarlates, cheios de inquietação),
escutava o emudecimento das vozes dos pássaros
e o silêncio da noite.
Via os girassóis a pendurarem
as cabeças ao lusco-fusco, como se um carrasco distraído
passeasse por entre os jardins.
No parapeito recolhia-se
a doce poeira de Setembro enquanto os lagartos
se escondiam nas curvaturas dos muros.
Dava longos passeios,
sedento duma coisa só:
dum relâmpago,
duma mudança,
de ti.

 

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▪ Adam Zagajewski
( Polónia 🇵🇱 )
in “Sombras de sombras”, Selecção e Tradução de Marco Bruno 🇵🇹, Editora Tinta da China, Lisboa, 2017