A CADEIRA AMARELA DE VAN GOGH

No chão de tijoleira uma cadeira rústica,
rusticamente empalhada, e amarela sobre
a tijoleira recozida e gasta.
No assento da cadeira, um pouco de tabaco num papel
ou num lenço (tabaco ou não?) e um cachimbo.
Perto do canto, num caixote baixo,
a assinatura. A mais do que isto, a porta,
uma azulada e desbotada porta.
Vincent, como assinava, e da matéria espessa,
em que os pincéis se empastelaram suaves,
se forma o torneado, se avolumam as
travessas da cadeira como a gorda argila
das tijoleiras mal assentes, carcomidas, sujas.

Depois das deusas, dos coelhos mortos,
e das batalhas, príncipes, florestas,
flores em jarras, rios deslizantes,
sereno lusco-fusco de interiores de Holanda,
faltava esta humildade, a palha de um assento,
em que um vício modesto – o fumo – foi esquecido,
ou foi pousado expressamente como sinal de que
o pouco já contenta quem deseja tudo.

Não é no entanto uma cadeira aquilo
que era mobília pobre de um vazio quarto
onde a loucura foi piedade em excesso
por conta dos humanos que lá fora passam,
lá fora riem, mas de orelhas que ouçam
não querem mesmo numa salva rica
um lóbulo cortado, palpitante ainda,
banhado em algum sangue, o «quantum satis»
de lealdade, amor, dedicação, angústia,
inquietação, vigílias pensativas,
e sobretudo penetrante olhar
da solidão embriagadora e pura.

Não é, não foi, nem mais será cadeira:
Apenas o retrato concentrado e claro
de ter lá estado e de ter lá sido quem
a conheceu de olhá-la, como de assentar-se
no quarto exíguo que é só cor sem luz
e um caixote ao canto, onde assinou Vincent.

Um nome próprio, um cachimbo, uma fechada porta,
um chão que se esgueira debaixo dos pés
de quem fita a cadeira num exíguo espaço,
uma cadeira humilde a ser essa humildade
que lhe rói de dentro o dentro que não há
senão no nome próprio em que as crianças têm
uma fé sem limites por que vão crescendo
à beira da loucura. Há quem assine,
a um canto, num caixote, o seu nome de corvo.
E há cantos em pintura? Há nomes que resistam?
Que cadeira, mesmo não-cadeira, é humildade?
Todas, ou só esta? Ao fim de tudo,
são só cadeiras o que fica, e um modesto vício
pousado sobre o assento enquanto as cores se empastam?

 

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▪ Jorge de Sena
( Portugal 🇵🇹 )

 

O LIVRO

Entrei numa livraria. Pus-me a contar os livros que há para
ler e os anos que terei de vida. Não chegam, não duro nem para
metade da livraria.
Deve certamente haver outras maneiras de se salvar uma pessoa,
senão estou perdido.
No entanto, as pessoas que entravam na livraria estavam todas
muito bem vestidas de quem precisa salvar-se.

Comprei um livro de filosofia. Filosofia é a ciência que trata
da vida; era justamente do que eu necessitava-pôr ciência na minha
vida.
Li o livro de filosofia, não ganhei nada, Mãe! não ganhei nada.
Disseram-me que era necessário estar já iniciado, ora eu só
tenho uma iniciação, é esta de ter sido posto neste mundo à imagem
e semelhança de Deus. Não basta?

Imaginava eu que havia tratados da vida das pessoas, como
há tratados da vida das plantas, com tudo tão bem explicado, assim
parecidos com o tratamento que há para os animais domésticos,
não é? Como os cavalos tão bem feitos que há!
Imaginava eu que havia um livro para as pessoas, como há
hóstias para cuidar da febre. Um livro com tanta certeza como uma
hóstia. Um livro pequenino, com duas páginas , como uma hóstia.
Um livro que dissesse tudo, claro e depressa, como um cartaz, com
a morada e o dia.

 

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▪ Almada Negreiros
( Portugal 🇵🇹 )

 

Anoitece em inferno a minha casa

Anoitece em inferno a minha casa.
Fico com este começo de verso
a serenar a exaltação de não dizer nada.
Deixem-me com este sorriso a morrer
por uma sílaba mais real onde um verso
me sossegue
com unhas de lama e sangue,
como garras.
Anoitece em inferno a minha casa.
Fica a certeza de não ter fim o que
de inutilidades se basta,
ou apenas o instante em que,
por um verso, eu fui
à outra parte da casa.

 

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▪ Helga Moreira
( Portugal 🇵🇹 )

In “Agora que falamos de morrer”, & Etc Editora, Lisboa, 2006

ESCREVIAS PELA NOITE FORA

Escrevias pela noite fora. Olhava-te, olhava
o que ia ficando nas pausas entre cada
sorriso. Por ti mudei a razão das coisas,
faz de conta que não sei as coisas que não queres
que saiba, acabei por te pensar com crianças
à volta. Agora há prédios onde havia
laranjeiras e romãs no chão e as palavras
nem o sabem dizer, apenas apontam a rua
que foi comum, o quarto estreito. Um livro
é suficiente neste passeio. Quando não escreves
estás a ler e ao lado das árvores o silêncio
é maior. Decerto te digo o que penso
baixando a cabeça e tu respondes sempre
com a cabeça inclinada e o fumo suspenso
no ar. As verdades nunca se disseram. Queria
prender-te, tornar a perder-te, achar-te
assim por acaso no meu dia livre a meio
da semana. Mantêm-se as causas iguais
das pequenas alegrias, longe da alegria, a rotina
dos sorrisos vem de nenhum vício. Este abandono
custa. Porque estou contigo e me deixas
a tua imagem passa pelas noites sem sono,
está aqui a cadeira em que te sentaste
a escrever lendo. Pudesse eu propor-te
vida menos igual, outras iguais obrigações.
Havias de rir, sair à rua, comprar o jornal.

 

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▪Helder Moura Pereira
( Portugal 🇵🇹 )
in “De Novo as Sombras e as Calmas”- Contexto, 1990

Líquido amor

Líquido amor
meu lago de narciso
onde pra ver-me não posso penetrar
e onde penetro sempre
porque na minha imagem
destruída
talvez te encontre a ti
se tu existes

e então existiria
para o lado de lá da ironia
com que nem finjo já sequer acreditar
no que procuro
sempre
porque já sei demais que esta procura
é o seu próprio fim
para que eu teça
e seja
o falso corpo construído
verdadeiro
da minha luz perdida

se tivesse havido luz
que eu pudesse ter perdido

mas nem lagos há
onde
me olhando
eu veja a tua imagem
há o teu corpo
há o meu corpo
há esta raiva fria
que prevê
e além da roupa e do perfume
em que fingimos nossos corpos
não temos nada mais que ossos e sangue
os lagos que os rochedos separaram
pra que não possam mais que reflectir
a sua bloqueada comunhão

 

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▪ Helder Macedo
(🇿🇦 África do Sul)
in “Poemas Novos e Velhos”, Editorial Presença Lisboa, 2011

ESTOU AQUI SENTADO NA MINHA CASA

Estou aqui sentado na minha casa
que é grande como uma mesa de mármore
tenho um pequeno espaço de trevas à frente
vejo que está cheio de mim vejo que está
num canto aborrecido do meu desespero
está sentado na minha casa prostrou-se
à minha frente e então não tenho outra vontade
que não de anunciar sente-se amigo sente-se
ao que vem sou eu disse-me sou uma história
uma diligência um mito comes carne
perguntei lá de onde estava sentado cada vez
cada vez mais me parecia um trono e ela
ela diz-me tenho estepes e perco-me de vista
e eu estava aqui sentado na minha casa
de gestos contidos sabes como quando conquistei
Paris e dei dois pulinhos de emoção contidos
como quando era criança e julgava que toda
toda a gente estava a olhar para mim e ainda pior
que afinal tinha passado desapercebido dei
dei dois passinhos de emoção rejubilei contido
e hoje passei o dia na minha mesa do tamanho
de um estádio de mármore e sussurrei
és tu és tu aqui mãe com nome de seita
estou disposto a matar por tuas mentiras
por exemplo que sou teu que me queres
lembras-te quando me fazias sentar do outro
do outro lado da mesa enquanto me negavas
um beijo lembras-te Mãe Rússia quando
à noite te pedia um sorriso sem dizer palavras
e tu quase me aconchegavas antes de apagar
antes de apagares e então estou aqui agora
sentado à espera de um botão de um erro
de uma falha de comunicação para fazer de ti
Terra das Terras Monstro dos Monstros
uma mesa bem grande de um rio ao outro
ah estou aqui sentado na minha casa
à espera que não haja hoje paredes para ela
que se possa transviar intuir rasgar
e formar muros de pedra de madeira
lembras-te como aquele que destruíste
aquele pobre carrinho aquele pobre trenó
de brincar em que me arrastava à espera de ti
à espera de uma mãe e quando já de noite
decidia que nunca iria tocar em bebida
já tu estavas sentada à minha frente e agora
que agonizo como um comum mortal que acreditou
em histórias vejo tão claramente que quis o que quis
e prostrei a meus pés os meus inimigos rijos
eram tantos como as estrelas do céu ou mais
agora aqui deitado na minha casa rodeado
por pessoas que me temem mas não me respeitam
como a Mãe Rússia e os seus cabelos de palha
e os seus cabelos de puta agora aqui deitado
ou sentado na minha casa recordo- me
inflo-me exalto-me se fosse poeta seria capaz
de escrever tudo isto subjuguei os outros
os outros que foram nossos dei cabo deles
trucidei-os desfi-los arruinei-os
porque foram ainda por cima irmãos desavindos
e com o seu sangue fiz um risco na cara
e chorei pouco ou melhor nada porque
porque desde que me deste cabo dos brinquedos
mãe ando com desejo de invadir a Polónia
os Normandos os Vikings e os Sumérios
desde que me possa sentar de novo na minha mesa
com mármore de vinte e quatro quilates
e ter alguém à espera do meu nojo isto é
do meu lamento profundo pelo passado
e pela esperança de um grandioso futuro
cheio de cadeiras e de olhares sérios e tristes
porque afinal irmão tive que vos destruir
para saberdes que sempre vos amei
aqui sentado na minha casa
de onde se vê sempre o sol morrer
e onde não há trevas que me cubram
apenas uma mesa enorme debaixo da qual
me escondo à espera que as bombas caiam
num outro país que escolhi sentado.

 

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▪ Pedro Braga Falcão
( Portugal 🇵🇹 )

 

Os teus olhos

Direi verde
do verde dos teus olhos

um rugoso mais verde
e mais sedento

Daquele não só íntimo
ou só verde

daquele mais macio
mais ave
ou vento

Direi vácuo
volume
direi vidro

Direi dos olhos verdes
os teus olhos
e do verde dos teus olhos direi vício

Voragem mais veloz
mais verde
_________ ou vinco

voragem mais crespada
ou precipício

 

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▪ Maria Teresa Horta
( Portugal 🇵🇹 )
in “Poesia Reunida”, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2009