CARTA DA INFÂNCIA


Poesia dita por Fátima Murta

 

 

Amigo Luar:

Estou fechado no quarto escuro
e tenho chorado muito.
Quando choro lá fora
ainda posso ver as lágrimas caírem na palma das
minhas mãos e brincar com elas ao orvalho
nas flores pela manhã.
Mas aqui é tudo por demais escuro
e eu nem sequer tenho duas estrelas nos meus olhos.
Lembro-me das noites em que me fazem deitar tão
cedo e te oiço bater, chamar e bater, na fresta
da minha janela.
Pelo muito que te tenho perdido enquanto durmo
vem agora,
no bico dos pés
para que eles te não sintam lá dentro,
brincar comigo aos presos no segredo
quando se abre a porta de ferro e a luz diz:
bons dias, amigo.

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▪ Carlos de Oliveira
( Portugal 🇵🇹 )
in “Trabalho Poético” Sá da Costa, 1998 (3ª ed.)

PARA O NELSON, QUE NUNCA LERÁ ESTE POEMA

Alto, esguio, talvez uns trinta anos,
completamente cego,
resiste à indiferença das ruas.
Agora, acompanhado por um jovem,
caminha neste mundo sombrio.

A minha voz,
saída dos escombros de uma guerra fria,
ouviu-se desolada e triste:
bom dia.

Passámos alguns segundos quietos
a ouvir o som um do outro.

Quem éramos afinal neste encontro?
Que armas trazíamos?
Quem era o que matava e o que foi morto?

-pouco mais haveria a dizer –

Ouviu-se, no fim da rua :
Adeus! Até à próxima.

Um cão – de um castanho escuro –
parecia não se importar muito.

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▪ Maria Azenha
( Portugal 🇵🇹 )
in ” A casa da memória”

É NOITE

É noite
espero-te
fumo
como a chaminé dum hospital

Escrevo
palavras que nadam num aquário
Tenho peças de relógio perdidas nas veias
Sou um colar violento ao teu pescoço de planta

Fumo
e teço um manto de algas
para te cobrir ao menor sinal de chuva

O sangue flui
com os destroços e os ossos das horas

O cigarro pega fogo à noite

 


▪ José Manuel Simões
( Portugal 🇵🇹 )
in “Sobras Completas”, Editora Abysmo, 2016

NATAL

Nasceu.
Foi numa cama de folhelho,
entre lençóis de estopa suja
num pardieiro velho.
Trinta horas depois a mãe pegou na enxada
e foi roçar nas bordas dos caminhos
manadas de ervas
para a ovelha triste.
E a criança ficou no pardieiro
só com o fumo negro das paredes
e o crepitar do fogo,
enroscada num cesto vindimeiro,
que não havia berço
naquela casa.
E ninguém conta a história do menino
que não teve
nem magos a adorá-lo,
nem vacas a aquecê-lo,
mas que há-de ter
muitos reis da Judeia a persegui-lo;
que não terá coroas de espinhos
mas coroas de baionetas
postas até ao fundo do seu corpo.
Ninguém há-de contar a história do menino.
Ninguém lhe vai chamar o Salvador do Mundo.

 


“Natal” de Álvaro Feijó dito por Mário Viegas

 
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▪ Álvaro Feijó
in “Diário de Bordo”
( Portugal 🇵🇹 )

TRE MADRI. TRE POESIE DI SABBIA

Ho sognato che avevo tre madri.
Tutte e tre stanno sotto un albero con gli occhi in alto.
La prima è trasparente e cuce pezzi fini di un cratere
dentro il mio petto.
La seconda brilla nel deserto nelle pareti della mia stanza.
E piange fili di seta in un caverna.
La terza suona il Silenzio di un Flauto,
cantando musiche antiche,
per gli anni che non abbiamo vissuto insieme.
Tutte e tre appartengono a un paese di sabbia e stanno tutte su un’isola.
noi abbiamo visto i prigionieri che ci hanno fatto compagnia.
Uno di loro è mia Madre. L’altro, mia figlia.

 

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▪ Maria Azenha
( Portugal 🇵🇹 )
in “C.M.”

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Mudado para italiano por _ Daniela Di Pasquale 🇮🇹 _ tem licenciatura em Letras e doutoramento em Estudos Comparatistas. Foi bolseira de pós-doutoramento durante 7 anos no Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa. Traduz poesia e ficção de português para italiano e o seu primeiro livro de poemas foi publicado em 2014 (Mater Babelica, Lietocolle). Actualmente trabalha na área da educação.



TRÊS MÃES. TRÊS POEMAS DE AREIA

 

 

Sonhei que tinha três mães.
As três estão debaixo de uma árvore de olhos para cima.
A primeira é transparente e cose pedaços finos de uma cratera
dentro do meu peito.

A segunda brilha no deserto nas paredes do meu quarto.
E chora fios de seda numa caverna.

A terceira toca o Silêncio de uma Flauta,
cantando músicas antigas,
pelos anos que não vivemos juntas.

As três pertencem a um país de areia, e estão todas numa ilha.
nós vimos os prisioneiros que nos fizeram companhia.
Um deles é minha Mãe. Outro, minha filha.

 

_
▪ Maria Azenha
( Portugal 🇵🇹 )
in “C.M”

 

* Áudio: “Três Mães. Três poemas de areia” — Maria Azenha [Poema e voz]
Música – ‘Beyond’ (excertos) , Tina Turner