As palavras começam a ficar velhas

As palavras começam a ficar velhas: têm
dores nas articulações e rangem, de vez
em quando, sem razão; reclamam óleos
e resinas, tempo e açucares mais lentos.

Mas também eu estou velha demais para
oficinas, tão cansada de livros e papéis,
morta por viver outras coisas — por amor,

talvez espreitasse de novo nas mangas do
mundo e escrevesse uma fiada de búzios
no pulso da areia. Mas quantos dos teus
beijos perderia? Perdoem-me os que

ainda esperam por mim. Não sei se volto.

 

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▪ Maria do Rosário Pedreira

Ocupei o dia com pequenas tarefas

Ocupei o dia com pequenas tarefas
Para silenciar um pedido uma súplica
Pintei o velho alpendre consertei a cancela do jardim
Libertei o cão para que perseguisse os pássaros pelo bosque
Recusou-se a partir
Persiste onde não existe caminho
Ao meu lado
Esperando que um vento frio
Dispa de folhas todos os ramos.

 

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▪ Luís Falcão
( Portugal 🇵🇹 )
in “Pétalas Negras Ardem Nos Teus Olhos”, Assírio & Alvim, Lisboa, 2007

A MÃE ASSOMA À PORTA 

A mãe gosta que lhe escrevam
quando chega o seu dia,
escrever é uma forma de impedir
a ruína da casa

A casa continua nítida apesar do tempo
e todas as coisas estão
nos seus lugares

A mãe caminha no meio dessas coisas
e tudo se mantém como sempre foi
já faltam algumas telhas,
isso é verdade
mas a casa permanece intacta

A mãe assoma à porta
e olha não se sabe para onde,
em que pensará a mãe
quando assoma à porta?

Nesse momento
tudo é feito de silêncio,
só assim a mãe é visível
duma forma tão nítida

Se houvesse qualquer barulho
a mãe não seria vista
tenho a certeza,
a mãe vê-se tão bem no silêncio

Eu acho que acontece o mesmo
com tudo o que é importante

 

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▪ Nuno Higino
( Portugal 🇵🇹 )

BANQUETE

Eles comem com as mãos cheias,
mastigam cifras, engolem promessas,
enxugam a boca com páginas de leis.

Nos copos, brindam ao progresso,
enquanto o povo com fome,
troca dignidade por migalhas.

Os bolsos são profundos,
os discursos, vazios.
Quando a conta chega,
não há culpados—
é o povo  que paga.


Ana Soares

POEMA DOS MOTORISTAS OFICIAIS

 

Encontram-se um pouco por todos os lugares.
Ora fumando,
orando pelos filhos junto a um deus
secretariado por magníficos
patrões.
De fato azul e gravata preta
de anel cachucho e jornal da bola,
o rabo habituado aos bons cabedais
pousado no capot ultra-reluzente.

Trazem da província em cada bolso do corpo
e estendem olhos julgadores às mulheres solitárias
de cigarro na boca em plana rua.
Às vezes são quatro ou cinco à espera do final
de um conselho em pleno parto,
de uma portaria inacabada
ou de uma reunião de economia mística.

Derramam no passeio
o ócio inexplicável de rústicos fiéis
e contam anedotas num bocejo amarelo de melancolia.
Quem lhes dera a reforma, a courela da mãe,
ou num sonho longínquo
essa noite sem lua em que engravidaram
a prima por descuido.

Sinto por todos eles um sentimento soturno
e muito gostaria
que Cesário os conhecesse
ao passear sozinho
pelas novas avenidas ao anoitecer.

 

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▪ Armando Silva Carvalho
( Portugal 🇵🇹 )

ESTE MINISTRO

Este ministro é um mentiroso
que agonia quando ele discursa
e se fosse só isso: bale sem jeito
às meias horas seguidas – e não pára!

bem-aventurados os duros de ouvido
a quem o céu abrirá as portas
desliguem p.f. o microfone
ou então tirem o país da ficha

 

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▪ Fernando Assis Pacheco
( Portugal 🇵🇹 )
in “Respiração Assistida” – 2003

 

POETA NO SUPERMERCADO

Indignar-me é o meu signo diário.
Abrir janelas. Caminhar sobre espadas.
Parar a meio de uma página,
erguer-me da cadeira, indignar-me
é o meu signo diário.

Há países em que se espera
que o homem deixe crescer as patas
da frente, e coma erva, e leve
uma canga minhota como os bois.
E há os poetas que perdoam. Desliza
o mundo, sempre estão bem com ele.
Ou não se apercebem: tanta coisa
para olhar em tão pouco tempo,
a vida tão fugaz, e tanta morte…
Mas a comida esbarra contra os dentes,
digo-vos que um dia acabareis tremendo,
teimar, correr, suar, quebrar os vidros
(indignar-me) é o meu signo diário.

Fernando Assis Pacheco
in “Cuidar dos Vivos”, 1963