VERTIGEM

Nem sempre sou brava ou forte
Há dias que entra água na primeira palavra
confundo o Sul com o Norte
perco-me no rés do chão

Há dias em que o mundo é um caminho
é um camião que me passa
atravessado na garganta
Há dias em que tudo o que preciso é uma manta

Nem sempre sou brava
nos mais altos dos céus as palavras parecem ocas
e algo se torna mais real
salto com um amargo na boca
numa paisagem feita de sal

Nem sempre sou forte
os sonhos nascem rareados
com pouco pelo, desfiados
nos novelos dos dias nublados

nos hálitos das segundas terças feias
que embaraçam as teias
e me tornam menos humana

Há dias que me levam
arrastada pela semana
em que a dor desce dum salto
no elevador estragado
num passo mal dado
a descer um degrau
a baixar a temperatura

Olha o degrau
Olha o degrau

Esfolo o joelho a caminhar
com a sede de suar

Há dias que me passa o barco
e a vontade de remar

Nem sempre sou brava
a água entra na primeira
e na última palavra
e nem sempre sou forte
confundo o Sul com o Norte
perco-me no rés do chão

Há dias assim
em que as rimas me saltam da mão
e todas as sílabas sabem a tónicas
desequilibradas no receio
de nunca mais conseguir beber um poema inteiro

 

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▪ Alice Neto de Sousa
( Portugal 🇵🇹 )

 

NATAL

Nasceu.
Foi numa cama de folhelho
entre lençóis de estopa suja
num pardieiro velho.
Trinta horas depois a mãe pegou na enxada
e foi roçar nas bordas dos caminhos
manadas de ervas
para a ovelha triste.
E a criança ficou no pardieiro
só com o fumo negro das paredes
e o crepitar do fogo,
enroscada num cesto vindimeiro,
que não havia berço
naquela casa.
E ninguém conta a história do menino
que não teve
nem magos a adorá-lo,
nem vacas a aquecê-lo,
mas que há-de ter
muitos Reis da Judeia a persegui-lo;
que não terá coroas de espinhos
mas coroa de baionetas
postas até ao fundo
do seu corpo.
Ninguém há-de contar a história do menino.
Ninguém lhe vai chamar o Salvador do Mundo.

 

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▪ Álvaro Feijó
( Portugal 🇵🇹 )

“Natal” de Álvaro Feijó dito por Mário Viegas

 

NINGUÉM MEU AMOR

Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos

 

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▪ Sebastião Alba
( Portugal 🇵🇹 )

HÁ SEMPRE UM COMBOIO QUE PARTE

Há sempre um comboio que parte
de algures em qualquer parte do mundo

Há sempre um cais com gente
ansiosa da viagem para a parte incerta

Há sempre um futuro com destino
que a gente do cais não conhece

Dentro deste comboio louco
vou eu em viagem dentro de mim

No cais alguém fica à espera
de um comboio que já partiu

 

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▪ Henrique Risques Pereira
( Portugal 🇵🇹 )

 

CIDADE OCULTA

A cidade está oculta
Todo um rio de cimento
persegue as ruas

Porque agora as horas são mais sólidas
os homens abraçam-se com os filhos ao entardecer
A outra tarde é uma chuva num círculo
abraçando o fogo
Não há imagens
e o mistério deixa-se improvisar

Se houvesse uma mesa
por onde o pássaro gigante vomitasse o ruído
a noite decerto se mostraria
menos receosa

Mas o que se passa não é mais vida
nem pasmo fala-se
Vem uma máquina exterior
mastigar a voz

Depois as estradas numa infinita gravata
sufocam a paisagem guilhotina
de dois horizontes
Pausa para separar os dias do irremediável
A cidade segue oculta

Os dias deixam aquela baba peçonhenta
a roçar a cauda pelas sombras do musgo cortante

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▪ Fernando Lemos
( Portugal 🇵🇹 )