ANTES DO CLARÃO

Vestida de água, lavam-lhe o corpo,
mãos lentas, líquidas,
bordando segredos no silêncio da solidão.
O vestido, desmaiado na terra,
conversa com as pedras.
Uma pomba,num gesto de alheamento
entre flores brancas e amarelas,
pousa no chão.

O céu,sem tempo,espera
quieto.

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▪ Maria Azenha
( Portugal 🇵🇹 )

POEMA DO COMEÇO

Eu num camelo a atravessar o deserto com um ombro franjado de túmulos numa mão muito aberta

Eu num barco a remos a atravessar a janela da pirâmide com um copo esguio e azul coberto de escamas

Eu na praia um vento de agulhas com um Cavalo-Triângulo enterrado na areia

Eu na noite com um objecto estranho na algibeira – trago-te Brilhante-Estrela-Sem-Destino coberta de musgo

 

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▪ António Maria Lisboa
( Portugal 🇵🇹 )

 

O amor já não é o que era

O amor já não é o que era
concluiu apressadamente o senhor Couto
vindo à tona do sonho de que o poema é feito.
O amor já não é o que era
repete-me a árvore roçagando
horas e horas, entre as folhas perdendo
um qualquer coisa que se juntasse a ela
e a ela acrescentasse uma qualquer lembrança
do que fosse o amor quando era o que era.

Sabe o senhor Couto que não ser o que foi
é tão fatal com ele como com o sentimento
de que avança a falar como se o sentisse?

 

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▪ Pedro Tamen
( Portugal 🇵🇹 )
in “Memória Indescritível”, Editora Gótica, Lisboa, 2000

Memória de Antonin Artaud

Não me reconheço entre os homens
porque são eles os demolidores do meu pensamento

Não participo desta razão comum de existir
porque luto dia a dia com sons e signos ocultos
para a invenção doutra linguagem
que não descobrirei
— sei-o perfeitamente —
mas a necessidade de estar só
dentro de um universo opiado e infinito
obriga-me a estender os cabelos no exílio

 

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▪ António Barahona
( Portugal 🇵🇹 )_
in “Pássaro-Lyra”, Averno, Lisboa, 2015

Nesta última tarde em que respiro

Nesta última tarde em que respiro
A justa luz que nasce das palavras
E no largo horizonte se dissipa
Quantos segredos únicos, precisos,
E que altiva promessa fica ardendo
Na ausência interminável do teu rosto.
Pois não posso dizer sequer que te amei nunca
Senão em cada gesto e pensamento
E dentro destes vagos vãos poemas;
E já todos me ensinam em linguagem simples
Que somos mera fábula, obscuramente
Inventada na rima de um qualquer
Cantor sem voz batendo no teclado;
Desta falta de tempo, sorte, e jeito,
Se faz noutro futuro o nosso encontro.

 

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▪ António Franco Alexandre
( Portugal 🇵🇹 )

 

A POESIA VAI

A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum
poeta por este senhor?» E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
— Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar? —

 

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▪ Manuel António Pina
( Portugal 🇵🇹 )

 

MEMÓRIA

Os homens vão e vêm pelas ruas da cidade.
Compram comida, jornais, dirigem-se às mais diversas empresas.
Têm rosados os rostos, os lábios cheios e vívidos.
Levantaste o lençol para ver o seu rosto,
baixaste-te para beijá-lo, num gesto corriqueiro.
Mas era a última vez. Era o mesmo rosto de sempre,
mas um pouco mais cansado. Era o mesmo vestido de sempre.
E os mesmos sapatos. E as mãos eram as mesmas mãos
que partiam o pão e serviam o vinho.
Hoje à medida que o tempo passa ainda levantas
o lençol para ver o seu rosto uma última vez.
Quando caminhas pela rua, ninguém te acompanha,
e quando tens medo, ninguém te dá a mão.
E não é a tua rua, nem é a tua cidade.
Não é tua a cidade iluminada: a cidade iluminada é dos outros,
dos homens que vão e vêm comprando comida e jornais.
Podes aproximar-te devagar da janela quieta,
observar em silêncio o jardim na escuridão.
Dantes quando choravas havia a sua voz serena;
e quando te rias lá estava o seu delicado riso.
Mas esse portão que se abria à noite está fechado para sempre;
e deserta ficará a tua juventude, o fogo apagado, a casa vazia.

 

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▪ Natalia Ginzburg
( Itália 🇮🇹 )
Mudado para português por Hugo Miguel Santos