A ESCRITA E A ETERNIDADE

Contra o poder desagregador do corpo
da escrita,
não há realidade, por mais extrema,
capaz de superar
a certeza moral da sua
eternidade. As mãos da mulher permanecem, hoje,
________apoiadas na
profunda névoa da
almofada.
No leito, soerguido, ela tenta ainda,
ainda,
uma vez mais, uma vez mais,
deixar-nos uma
mensagem.
Mas a caneta pende, frouxa, dos lírios
dos dedos
como se fora um leve descuido de vento aflorando
das mangas cumpridas
da camisa de noite.
Não sei se, de tão nus, estes
não conseguem mais pensar em fazer ouvir ideias
simples,
tais como as de um poema
poder ser (ou não)
o que o anula no silêncio do pó: ou se todos os seus
não terão contido «mais ciência
que virtude»: e não porque a profanação (e imperfeição)
da arte
lhes não tenha atravessado a discrição e gentileza,
mas porque os traumas,
as proibições,
as doenças,
a loucura,
a loucura, a loucura,
Sylvia,
foi, decerto, o que neles superou
o instante
em que o animal
se afastou – entendendo sermos
sob a terra penosamente
móveis
e mortais.

 

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▪ Eduarda Chiote
( Portugal 🇵🇹 )
in ‘Órgãos Epistolares’, Edições Afrontamento, Porto, 2010

EU PERCEBO, CLARO, QUE NÃO ME COMPREENDAS

Eu percebo, claro, que não me compreendas. Há um momento em que ficamos completamente sós com os nossos fantasmas. E não há, disso, amor algum que nos salve. Constatamos, em silêncio, que tudo desabou.

Mas o que eu não queria, de todo, era fazer literatura desta casa. Devo-lhe demasiadas memórias, pensei muitas vezes na sua provável ruína. Saber que é agora «minha» representa um acréscimo de dor e de responsabilidade.

Tem-me ajudado, reconheço, trazer aqui amigos, e partilhar com eles o impartilhável. Pois é-lhes difícil adivinhar quantas recordações estão associadas a uma fotografia aparentemente banal, a uma jarra coberta de pó ou ao velho gira-discos do meu pai.

 

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▪ Manuel de Freitas
( Portugal 🇵🇹 )
in “Ah, vous dirai-je, Maman”, Edição de Autor, Lisboa, 2015

NA FRÁGIL LUZ DAS PAISAGENS

No outono as cidades amarelecidas prolongam-se
para dentro de guarda-chuvas abertos
que teimam socorrer os amantes de um dilúvio universal.

Algumas folhas de árvores esvoaçam como aves
em estado de chamas na frágil luz das paisagens.

Há bilhetes de outono espalhados por toda a parte,
alguns tristes,
outros dão para uma porta fechada que se pode abrir
a qualquer instante.

Quando entrei em casa não havia ninguém lá dentro.
Nem o inverno me esperava.

 

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▪ Maria Azenha
( Portugal 🇵🇹 )

in “A Casa da Memória”, Editora Urutau, 2024

 

 

SOBRE LA FRÁGIL LUZ DE LOS PAISAJES

 

En otoño las ciudades empalidecidas se prolongan
hacia dentro de paraguas abiertos
que se empeñan en socorrer a los amantes de un diluvio universal.

Algunas hojas de árbol revolotean como aves
en llamas sobre la frágil luz de los paisajes.

Hay mensajes de otoño esparcidos por todas partes.
algunos tristes,
otros dan a una puerta cerrada que se puede abrir
en cualquier momento.

Cuando entro en casa no hay nadie dentro.
Ni el invierno me aguarda.

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▪ Maria Azenha
( Portugal 🇵🇹 )

Mudado para castelhano por José Ángel Cilleruelo ( 🇪🇸 )
 
 

PORTUGAL

Portugal
Eu tenho vinte e dois anos e tu às vezes fazes-me sentir como se tivesse
oitocentos
Que culpa tive eu que D. Sebastião fosse combater os infiéis ao norte de
África
só porque não podia combater a doença que lhe atacava os órgãos genitais
e nunca mais voltasse
Quase chego a pensar que é tudo uma mentira
que o Infante D. Henrique foi uma invenção do Walt Disney
e o Nuno Álvares Pereira uma reles imitação do Príncipe Valente
Portugal
Não imaginas o tesão que sinto quando ouço o hino nacional
(que os meus egrégios avós me perdoem)
Ontem estive a jogar póker com o velho do Restelo
Anda na consulta externa do Júlio de Matos
Deram-lhe uns electro-choques e está a recuperar
àparte o facto de agora me tentar convencer que nos espera um futuro de
rosas
Portugal
Um dia fechei-me no Mosteiro dos Jerónimos a ver se contraía a febre do
Império
mas a única coisa que consegui apanhar foi um resfriado
Virei a Torre do Tombo do avesso sem lograr uma pérola que fosse
das rosas que Gil Eanes trouxe do Bojador
Portugal
Vou contar-te uma coisa que nunca contei a ninguém
Sabes
Estou loucamente apaixonado por ti
Pergunto a mim mesmo
Como me pude apaixonar por um velho decrépito e idiota como tu
mas que tem o coração doce ainda mais doce que os pastéis de Tentugal
e o corpo cheio de pontos negros para poder espremer à minha vontade
Portugal estás a ouvir-me?
Eu nasci em mil novecentos e cinquenta e sete Salazar estava no poder nada
de ressentimentos
um dia bebi vinagre nada de ressentimentos
Portugal
Sabes de que cor são os meus olhos?
São castanhos como os da minha mãe
Portugal
gostava de te beijar muito apaixonadamente
na boca

 
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▪ Jorge Sousa Braga
( Portugal 🇵🇹 )

 

Mendigos invadem a casa

Mendigos invadem a casa.

Já não cabem nas ruas,
foram escorraçados das praças e dos parques das cidades.

Caminharam quilómetros.
Transportam outros mendigos às costas.

Entram, ruidosos, por portas que alguém, ou alguma coisa,
abriu de par em par.

Não pedem dinheiro nem comida, pedem livros.

Alguns estão na biblioteca
e exigem que se lhe dê a ler os poemas que escolheram.

Sentam-se nas cadeiras ao acaso, deitam-se desordenadamente no chão,
distribuem-se, pensativos e sóbrios, pelas mesas que transbordam de comida.

Rezam antes de comer, pedem perdão pelas coisas que fizeram,
pelos crimes que cometeram
e pelos que voltarão a cometer.

De olhos fechados, quase imperceptivelmente, rezam movendo os lábios.

Abrem e fecham as mãos, onde brilham estrelas tatuadas.

Estão agora calmos; alguns velam, protegem os que adormeceram.

Um deles boceja, vencido pelo sono.

Outro levanta a cabeça por entre o mar de corpos enroscados
como um cão que interroga com o faro uma casa vazia, desde há muito
[fechada.

Como água correndo,
ouve-se o murmúrio inteligente de uma pessoa que chora em voz baixa.

Ninguém tem frio

No meio da imensa noite, alguém sorri.

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▪ António Ladeira
( Portugal 🇵🇹 )

 

A CADEIRA DE VAN GOGH

A criança perguntou:
o que é isto?
São cerejas.
E isto?
São rosas.
Mas ninguém lhe falou do mistério que encerram.

O menino cansou-se de chamar as coisas pelos nomes,
de saber que uma cereja era uma cereja,
uma rosa uma rosa,
uma cigarra uma cigarra.

Não lhe bastava saber o nome das coisas.
Sondava-lhes o mistério, Apontava-lhes a alma,
trilhava o caminho de regresso à fonte.

Horas reveladoras,
Onde em tudo adivinhava o sentido
antes de tudo ser apenas um nome.

Já homem, apontou o seu coração ao coração de uma cadeira velha,

e por saber olhá-la,
imortalizou-a.

 

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▪ Ana Zanatti
( Portugal 🇵🇹 )