O POEMA É UM PASSAPORTE

Fiz a viagem inteira de pé:
ninguém me deu o lugar
mesmo que eu tivesse uns cem anos a mais que os outros passageiros
mesmo que em mim fossem óbvios
os sinais de três grandes males:
o Orgulho, a Arte, a Solidão.


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▪ Nina Cassian
(Roménia 🇹🇩)
Poema dito e mudado para português por Diogo Costa Leal

Fuga da morte

Leite negro da madrugada bebemo-lo ao entardecer
bebemo-lo ao meio-dia e pela manhã bebemo-lo de noite
bebemos e bebemos
cavamos um túmulo nos ares aí não ficamos apertados
Na casa vive um homem que brinca com serpentes escreve
escreve ao anoitecer para a Alemanha os teus cabelos de oiro Margarete
escreve e põe-se à porta da casa e as estrelas brilham
assobia e vêm os seus cães
assobia e saem os seus judeus manda abrir uma vala na terra
ordena-nos agora toquem para começar a dança

Leite negro da madrugada bebemos-te de noite
bebemos pela manhã e ao meio-dia bebemos-te ao entardecer
bebemos e bebemos
Na casa vive um homem que brinca com serpentes escreve
escreve ao anoitecer para a Alemanha os teus cabelos de oiro Margarete
Os teus cabelos de cinza Sulamith cavamos um túmulo nos ares aí não ficamos apertados
Ele grita cavem mais fundo no reino da terra vocês aí e vocês outros cantem
e toquem
leva a mão ao ferro que traz à cintura balança-o azuis são os seus olhos
enterrem as pás mais fundo vocês aí e vocês outros continuem a tocar para a dança
Leite negro da madrugada bebemos-te de noite
bebemos-te ao meio-dia e pela manhã bebemos-te ao entardecer
bebemos e bebemos
na casa vive um homem os teus cabelos de oiro Margarete
os teus cabelos de cinza Sulamith ele brinca com as serpentes
E grita toquem mais doce a música da morte a morte é um mestre que veio da Alemanha
grita arranquem tons mais escuros dos violinos depois feitos fumo subireis aos céus
e tereis um túmulo nas nuvens aí não ficamos apertados
Leite negro da madrugada bebemos-te de noite
bebemos-te ao meio-dia a morte é um mestre que que veio da Alemanha
bebemos-te ao entardecer e pela manhã bebemos e bebemos
a morte é um mestre que veio da Alemanha azuis são os teus olhos
atinge-te com bala de chumbo acerta-te em cheio
na casa vive um homem os teus cabelos de oiro Margarete
atiça contra nós os seus cães oferece-nos um túmulo nos ares
brinca com serpentes e sonha a morte é um mestre que veio da Alemanha
os teus cabelos de oiro Margarete
os teus cabelos de cinza Sulamith

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▪ Paul Celan
(Roménia 🇹🇩)
Mudado para português por João Barrento

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Paul Pessach Antschel, romeno-judeu-alemão, nascido em 1920, com histórico familiar de passagem por campos de concentração, e considerado uma das vozes mais radicalmente singulares da poesia de todos os tempos, adotou o nome de Paul Celan após o termo da Segunda Guerra Mundial, passando grande parte da vida, num exílio voluntário, na cidade de Paris, onde se suicidou, em 1970, atirando-se da ponte Mirabeau ao rio Sena.

SILÊNCIO

Há tanto silêncio à volta que pareço ouvir
como os raios da lua esbarram nos vidros.

No peito
uma voz estranha despertou
e uma canção canta em mim longínquas lembranças.

Diz-se que os antepassados mortos antes de tempo,
com sangue ainda jovem nas veias,
com paixões intensas no sangue,
com sol ardendo nas paixões
retornam,
retornam para continuar
em nós
a vida não vivida.

Há tanto silêncio à volta que pareço ouvir
como os raios da lua esbarram nos vidros.

Ó, quem sabe, alma, em que peito cantarás
também tu mais além dos tempos
– nas doces cordas do silêncio,
em harpas de treva – a nostalgia afogada
e a frágil alegria de viver? Quem sabe? Quem sabe?

 

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▪ Lucian Blaga
(Roménia 🇹🇩)
Mudado para português por _ Diogo Vaz Pinto

E EXISTE MESMO UM CIRCO NO CÉU?

E existe mesmo um circo no céu?
Mamãe diz que sim.
Papai ri, teve más experiências com Deus.
Se Deus fosse Deus, desceria para nos ajudar, diz.
Mas por que ele deveria descer se, afinal de contas, nós viajaremos até ele mais tarde?
Seja como for, os homens acreditam menos em Deus do que as mulheres e as crianças, por causa da concorrência. Meu pai não quer que Deus também seja meu pai.

 


▪ Aglaja Veteranyi
( Roménia 🇹🇩 )

Mudado para português do brasil por  Fabiana Macchi

Receita para fazer um poema dadaísta

Pegue num jornal.
Pegue numa tesoura.
Escolha no jornal um artigo com o comprimento que pensa dar ao seu poema.
Recorte o artigo.
Depois, recorte cuidadosamente todas as palavras que formam o artigo e meta-as num saco.
Agite suavemente.
Seguidamente, tire os recortes um por um.
Copie conscienciosamente pela ordem em que saem do saco.
O poema será parecido consigo.
E pronto: será um escritor infinitamente original e de uma adorável sensibilidade, embora incompreendido pelo vulgo.

 

▪ Tristan Tzara
( Roménia 🇷🇴)