Os gatos absurdos de Maria Azenha

 

Os gatos absurdos de Maria Azenha

 

MARIA ESTELA GUEDES
Dir. Triplov

Texto de apresentação de «O livro do absurdo», de Maria Azenha (Urutau, 2024). Auditório da inComunidade, 27 de Abril de 2024, Porto.

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Mais um excelente livro de Maria Azenha, com a sua proposta de exposição ou explicação do absurdo. Começando pela indicação de que ab+surdo diz respeito ao ouvido, àquilo que o ouvido percebe como dissonante, música desagradável, Maria Azenha logo o dimensiona no âmbito das sonoridades, no cenário das ruas, nos locais ruidosos, onde se ouve parte do que lhe fere a sensibilidade e ela assimila como absurdo. Dissonante e por isso absurdo é o facto de se ouvirem em Lisboa muitas línguas estrangeiras, que a autora deixa patente nos títulos e em alguns versos dos poemas. A amplitude do lugar dissonante vai da casa ao mundo, como ilustra o poema “O dia da Europa”, em que o ruído é o das bombas.

E, para o leitor, o que é absurdo neste livro? Diria que é a “Natureza morta” do poema assim intitulado, ao mostrar que essa modalidade, ou descritivo, da pintura declara que não há perguntas nem respostas, ou seja, a natureza morta anula o ruído, portanto a palavra. Porém o ouvido não é o único órgão de percepção da realidade, os olhos também a assimilam, bem como os restantes órgãos dos sentidos. Talvez por isso a personagem principal deste livro seja cega. Quais os seus bens? – Uma caneta. Que perigo enfrenta? – O do suicídio, pela certa. Vamos ouvir:

 

EARTH

abri todas as portas
não havia ninguém

encontrei um cego
uma caneta
uma corda

o Homem do Absurdo

 

Podia considerar que o narrador, pois trata-se de uma história, encontrou uma série de objetos independentes. Prefiro entender que encontrou uma personagem com alguns atributos. Trata-se do Homem do Absurdo, e com ele a questão do conhecimento, expressa no abrir portas. Vamos imaginar que esta personagem em esboço é algo como um peregrino, um eremita que busca o saber, abrindo portas, e que as suas chaves são pobres e poucas – a caneta, ferramenta de comunicação, a cegueira, capaz de imaginar, não esquecendo que Homero é cego, ou seja, é um vidente, e por fim uma corda. A corda é absurda, convenhamos, por isso vamos supor que é instrumento de morte porque existe nesta uma porta para o conhecimento do Além.

A morte é um dos temas mais insistentes do livro, por isso não estranhamos que um deles seja o de Deus. Tema nitzscheano, tal como o proposto no último verso do poema “Avant-garde”, ao referir a obra “Para além do bem e do mal”. Já ficam mareados de absurdo esses temas da filosofia contemporânea, quando deus desce do seu trono metafísico ao corpo exigente de funeral, com poemas em vez de flores a acompanhar um ritual que se intitula vanguarda:

 

AVANT-GARDE

 

incluirei poemas de deus
no seu funeral

aquilo que se faz
por amor
está

para além do bem e do mal

 

Voltemos ao Homem do Absurdo e sua caracterização. Cego, apesar de ter vivido onze anos com um oftalmologista, muito dado a fobias, com tendência suicida, já entrado em anos, pois custa-lhe dobrar os joelhos, alguma obesidade, de sanidade mental delicada, com vinte anos de experiência de psicanálise, tanto mais pessimista quanto político, ateu, militante holístico, o Homem do Absurdo é uma personagem complexa, a que falta acrescentar a suspeição de narrador na primeira pessoa, aqui e ali. A sua autobiografia dispersa-se pelos poemas, de forma direta ou indireta, mas no longo texto intitulado «Como será estar morto durante duzentos anos» a sua história de vida concentra-se e cresce em importância, conferindo a este último livro de Maria Azenha o caráter narrativo a que venho prestando atenção.

Antes de prosseguir nesse caminho, chamo entretanto a atenção para a minimalidade da maior parte dos poemas, curtos textos gnómicos, que em muitos casos apresentam uma estrofe inicial na qual a realidade imediata transparece, rematada por uma finda, estrofe ainda mais breve que a inicial, que contém a conclusão sentenciosa, mas fora já da realidade primeira. A sentenciosidade, possa embora traduzir uma realidade de primeiro nível, por variados processos de escrita poética desemboca no absurdo, num patamar surrealista. Vejamos o poema «Excuse me», ou «Se me dá licença», em cena interpretável como de elevador, veículo mais inspirador do que as escadas:

 

durmo num sétimo andar
nunca encontrei nas escadas Tchekhov
nem a orelha de Van Gogh
(…)
EXCUSE ME

 

Um silêncio, expresso por um parêntesis que contém reticências, e o remate cortês, advindo apenas da elipse do elevador, pois não é admissível que o Homem do Absurdo subisse e descesse a pé as escadas de um sétimo andar, sobretudo quando nas escadas nunca nenhum objeto bizarro fez a sua aparição. Tais situações despertam o riso, não o riso da alegria, sim a reação nervosa ao que transtorna. Tudo isto mescla emoções, desencadeia cenas insólitas como num teatro, sugerido aliás pelo pano que corre ou desce do poema «O cortinado caiu»:

 

alguns pais casam-se com filhas
algumas filhas casam-se com pais
as casas movimentam-se todo o dia
lavadas vezes sem conta

o cortinado caiu

 

 

O Homem do Absurdo é a principal personagem do livro de Maria Azenha, mas de similar importância são as crianças. Vemo-las no Natal, por exemplo, a jogar ao rapa, ou a ouvir a explicação de como se joga ao rapa e qual a significação das quatro letras nas quatro faces do rapa. Jogo infantil, em todo o caso, e como sempre, podemos progredir do jogo natalino para o rapa dos políticos, caso que me leva a comentar que a poesia de Maria Azenha é invariavelmente muito crítica em relação aos usos da política e da sociedade contemporânea. Aponte-se como exemplo, entre tantos, o poema “Manhãs submersas”, que parece armar-se com a autoridade de Vergílio Ferreira para assim abrir, na estrofe I, e as seguintes são ainda mais ácidas: “Continuo rodeada de idiotas / a poesia está na mercearia/ o natal na loja do cidadão”.

Voltando porém à criança, e o poeta é a maior delas, se me permitem, basta falar no Natal, como agora aconteceu, para elas acudirem em busca das prendas. O aspeto infantil pode apresentar-se na escrita, no léxico dessa idade, como se para falar de algo muito importante, de que só os arrogantes comentadores políticos sabem falar, como da Europa, fosse preciso baixarmos o volume de voz até ao sussurro das carteiras da escola primária. É o que lemos precisamente no poema “A Europa tinha que saber”, e tinha que saber que estamos todos no Rossio a jogar às cartas.

As cartas lembram a Rainha de Copas, sempre disposta a mandar cortar cabeças, lembram Alice e outros amigos, entre os quais o Gato de Cheshire, à espreita no final dos poemas, ele que é um permanente sorriso. Uma literatura que assume a inocência das crianças para corroer mais eficazmente o tecido podre do nosso tempo. A ingenuidade, equivalente nas letras ao naïf da pintura, assenta na interferência da criança no discurso, de tal modo que pode aumentar o absurdo de tal maneira que, em consequência, deus arranja um terçolho. Comentei o poema “Hermes Trimegisto e a sua tábua azul”.

Para concluir, insisto em que neste livro de Maria Azenha se verifica um desvio da lírica para a narrativa, com a presença de uma personagem, o Homem do Absurdo, com andamento de história sendo contada e com desfecho. Em vez do habitual fim feliz ou infeliz, os textos de Maria Azenha optam por uma linha oblíqua de tipo surrealista, como acontece com a árvore de Natal que sofria de falhas de memória:

 

A ÁRVORE DE NATAL QUE SOFRIA DE ALZHEIMER

 

uma mulher colecionava bolas
pendurou-as na árvore de natal

o gato brincou com elas
por causa do distanciamento social

desapareceram o gato e as bolas
e a mulher também desapareceu

mais tarde bateu à porta
mas
a
árvore
não a reconheceu

 

Quanto ao gato absurdo, aquele que está e não está morto, ele demonstra, como quis Shrödinger, que é afinal o absurdo do ser e não ser a matéria quântica da poesia:

 

NO ARMÁRIO DA FÍSICA QUÂNTICA

 

um dos fundadores da teoria quântica Schrödinger
contou a famosa história do gato para enfatizar
que a teoria quântica diz algo absurdo
o gato não observado de Schrödinger
está simultaneamente morto e vivo – até que observá-lo
faça com que esteja ou morto ou vivo

digo então:
este poema que não foi observado por Schrödinger
está ao mesmo tempo morto e vivo
se o observas morto o poema está morto
se o observas vivo o poema está vivo
o poema não existe nunca existirá sem ti

[…]

 

 

MARIA AZENHA
O livro do absurdo
Portugal/Brasil, Editora Urutau, 2024

VISIONES EN LA NIEVE

 

Visiones en la nieve.

Interpretación de «Bosque blanco» (2020), de Maria Azenha

*

José Ángel Cilleruelo

 

Tras algunos libros con un carácter temático extrovertido, Maria Azenha regresa con Bosque Branco (2020) a los poemas extremadamente breves y al simbolismo endocéntrico, es decir, aquel en el que los textos ramifican un único símbolo troncal. Una poética que ya había inspirado alguno de sus títulos esenciales, como A sombra da Romã (2011), con el que el recién publicado establece ciertos paralelismos. Formales, como la extensión de los poemas, de dos y tres versos; pero sobretodo en el contenido, como poemas de amor escritos no a una persona, sino al Amor mismo: «Es primavera, Amor. / Mi corazón nació en el tuyo, en flor». Al igual que en aquel libro, Bosque Branco está compuesto, en líneas generales, por las declaraciones, promesas, carencias, deseos, regalos, intimidades, temores, ausencias y sueños amorosos. Y también por otro elemento, ausente entonces, que desfigura el paralelismo.

   Bosque Branco es un poema de amor al Amor: «Una criatura inocente duerme en mi lecho / Con el nombre de mi Amado», se lee en los dos primeros versos con una alusión clara al mito clásico de Amor. Pero en el tercer verso añade: «Viene cada mañana a resucitarme».

  En primer término, como innovación formal, se observa en los tres versos del poema dos instancias semánticas separadas. Una previa de declaración amorosa (dos versos iniciales), otro de contraste (tercer verso). Este esquema se repite en los poemas dípticos. Un verso inicial afirma; otro final, contrapone la afirmación, de suerte que el resultado es la transformación del monólogo de la Amada en un diálogo implícito. Como si después de lo afirmado, alguien (el Amado, la circunstancia, el tiempo, la propia Amada…) hubiera matizado lo dicho antes del contraste. En esta sombra de diálogo prende un acontecer, un mínimo conflicto o quizá solo su resolución. Una trama implícita. Solo en dos versos: declaración amorosa y contrapunto.

  En el poema inicial, arriba citado, el contraste, o el acontecer, aparece en el término «resucitar». No es ya, el que ahora desarrolla Bosque Branco, un amor al Amor primaveral, renacido, sino a un Amor póstumo, resucitado, es decir, el que regresa al Amor después de padecer aflicción, ausencia o pérdida. Otro díptico da una pista del padecimiento: «La polvareda del exilio huele a pólvora. / Amor, estamos en un gran campamento de extranjeros.» El resucitar diario del Amor lo es desde un mundo injusto y desolado, aquel que reflejaban los títulos anteriores de la poeta, A casa de ler no oscuro (2016) o Xeque-Mate (2019). Esta es la primera dimensión temática de Bosque Branco: el regreso de la autora a los símbolos introvertidos, que surgen ahora impregnado con los símbolos exocéntricos: «En la puerta del desierto somos alumnos de la nieve».

  Existen en el libro otras dimensiones que se entrecruzan y remiten también a tramas temáticas enraizadas a la obra de Maria Azenha: una religiosidad propia, con un Dios insolidario al que se le acusa («Vi a Dios decapitar los árboles del mundo») y al que se le pide clemencia («Oh, Dios, no nos apartes tanto»); un universo metapoético personal («Esta noche, abrazada a mi padre / No tengo miedo de escribir»); y una actitud lírica activa, donde se excluye lo contemplativo: «Entrelazo las manos y recuerdo tus brazos. / Mi corazón ya corre a buscarte».

  El símbolo central a partir del cual se deriva la experiencia de los poemas es el «desierto», o «bosque blanco». Un desierto que a veces es de nieve, o se le llama Ángel. O propicia una carta de amor. En este «bosque» o «desierto» no concurre un único sentido, sino una encrucijada de significados. Cada vez que aparece enunciado o aludido, lo es con un sentido distinto. La diferencia entre los símbolos de la poesía tradicional y de la poesía moderna — también su legibilidad e interpretación — radica en este aspecto. El símbolo contemporáneo no admite una clave de lectura única, sino una gama de equívocos que lo amplían y difuminan.

  El «desierto» es, en sentido lato, los extramuros de los amantes. A veces se concreta en su intemperie, en otras ocasiones adquiere otros matices. Como en el siguiente verso: «Quien en el desierto busca un refugio ve allí su túmulo». En el extremo de la intemperie del «bosque blanco» se encuentra el límite existencial. Su conciencia. Una suerte, también, de intemperie absoluta, ajena a la temporalidad («Nos quedamos solos y no envejecemos»). O, dicho de otra manera: en el amor del Amor («Y tú, Amor, tienes un solo [túmulo] para los dos»), a salvo del paso del tiempo, aunque se ciña alrededor el círculo de la sola blancura de la nieve: «Los amantes están solos».

  El ensimismamiento amoroso (el amor al Amor), a diferencia del mito clásico, no es ciego. Vive en un mundo injusto y lo ve deteriorarse. Su lugar linda con la desolación y la ve acercarse. Su gesto se encamina hacia la soledad y la ve avanzar. Aun así, lo amoroso y lo ensimismado se sobreponen a la visión. La apuesta poética de Maria Azenha por el lenguaje amoroso —igual que en otra época fue la opción de los místicos— es por la de un idealismo asediado que aún resiste. Un lenguaje amoroso que al mismo tiempo se yergue crítico y visionario.

 


 

Visões na neve.

Interpretação de «Bosque branco» (2020), de Maria Azenha

*

José Ángel Cilleruelo

 

Depois de alguns livros de carácter temático extrovertido, Maria Azenha regressa, com Bosque Branco (2020), aos poemas brevíssimos e ao simbolismo endocêntrico, isto é, em que os textos se ramificam a partir de um único símbolo troncal. Uma poética que já tinha inspirado  alguns dos seus  títulos essenciais, como A sombra da Romã (2011), livro com o qual este agora publicado estabelece certos paralelismos. Formais, como a extensão dos poemas, dois e três versos; mas sobretudo no que respeita ao conteúdo, como nos poemas de amor dirigidos, não a uma pessoa, mas ao próprio Amor: «É primavera, Amor. / O meu coração nasceu no teu, em flor». Tal como o primeiro livro, também Bosque Branco se compõe, em linhas gerais, de declaracões, promessas, carências, desejos, prendas, intimidades, temores, ausências e sonhos amorosos. E ainda de outro elemento, até então ausente, que desfigura o paralelismo.

     Bosque Branco é um poema de amor ao Amor: «Uma criança inocente dorme em meu leito / Com o nome do meu Amado», lê-se nos dois primeiros versos, numa alusão clara ao mito clássico do Amor. Mas o terceiro verso acrescenta: «Vem a cada manhã ressuscitar-me».

    Em primeiro lugar, como inovação formal, observam-se duas instâncias semânticas distintas, nos três versos do poema. Uma prévia, de declaração amorosa (os dois versos iniciais), outra de contraste (o terceiro verso). Este esquema repete-se nos poemas dípticos. Um verso de abertura afirma; outro, final, contrapõe, de modo que o resultado é a transformação do monólogo da amada num diálogo implícito.
Como se depois do afirmado, alguém (o Amado, a circunstância, o tempo, a própria Amada …) tivesse matizado o que fora dito, antes do contraste. Nesta sombra de diálogo, esboça-se um acontecer, um conflito mínimo, ou talvez apenas a sua resolução. Um enredo implícito. Apenas em dois versos: declaração de amor e contraponto.

   No poema de abertura acima citado, o contraste, ou o acontecer, aparece no termo “ressuscitar”. Já não se trata de um amor ao Amor primaveril, renascido, mas a um Amor póstumo, ressuscitado, que regressa ao Amor depois de padecer aflição, ausência ou perda.
Outro díptico dá-nos uma pista sobre sofrimento: «A poeira do exílio tem cheiro a pólvora. / Amor, estamos num grande campo de estrangeiros.» O ressuscitar diário do Amor ocorre num mundo injusto e desolado, já reflectido nos livros anteriores da poeta. “A casa de ler no escuro” (2016) ou “Xeque-Mate” (2019). Esta é a primeira dimensão temática de “Bosque Branco”: o regresso da autora aos símbolos introvertidos, que surgem agora impregnados de símbolos exocêntricos: “À porta do deserto somos alunos da neve”.

  Existem no livro outras dimensões que se entrecruzam e remetem para tramas temáticas enraizadas na obra de Maria Azenha: uma religiosidade própria, com um Deus insolidário que é acusado («Vi Deus decapitar as árvores do mundo») e a quem se pede clemência («Ó Deus, não nos apartes demais!»); um universo metapoético pessoal («Esta noite, abraçada a meu pai / Não tenho medo de escrever»); e uma atitude lírica activa, de que se exclui o contemplativo: «Entrelacei as mãos e lembrei-me dos teus braços. / O meu coração foi a correr procurar-te».

    O símbolo central de onde deriva a experiência dos poemas é o «deserto», o «bosque branco». Um deserto que às vezes é de neve, ou a que se chama Anjo. Ou propicia uma carta de amor. Neste “bosque” ou “deserto” não ocorre um sentido único, mas uma encruzilhada deles. Cada vez que é referido ou aludido, é com um significado distinto. A diferença entre os símbolos da poesia tradicional e os da poesia moderna — e também a sua legibilidade e interpretação — radica neste aspecto. O símbolo contemporâneo não admite una chave de leitura única, mas sim una gama de equívocos que o ampliam e obscurecem.

    O “deserto”, em sentido lato, é o extramuros dos amantes. Pode concretizar-se a partir da sua própria intempérie, ou assumir outros matizes. Como no seguinte verso: “Quem no deserto procura uma refúgio, vê ali o seu túmulo”. No extremo da intempérie  do “bosque branco”, encontra-se o limite existencial. A consciência dele. Uma espécie, também, de intempérie absoluta, alheia à temporalidade (“Ficámos sós e não envelhecemos”). Ou, dito de outra forma: no amor do Amor (“E tu, Amor, tens um [túmulo] só para nós dois.”), a salvo da passagem do tempo, embora em redor se aperte o círculo da brancura única da neve: “Os amantes estão sozinhos.”

  O ensimesmamento amoroso (o amor ao Amor), ao contrário do mito clássico, não é cego. Vive num mundo injusto e vê-o a deteriorar-se. O seu lugar faz fronteira com  a desolação e esta vai-se aproximando. O seu gesto encaminha-se para a solidão e vê-a avançar. Ainda assim, o amoroso e o ensimesmado sobrepõem-se à visão. A aposta poética de Maria Azenha pela linguagem amorosa – tal como noutra época fizeram os místicos – é a de um idealismo sitiado que ainda resiste. Uma linguagem amorosa que se ergue, ao mesmo tempo crítica e visionária



 

Mudado para português por — Maria Soledade Santos 🇵🇹 Poeta, tradutora e professora.

Nasceu em 1957, no Sabugal. Publicou “Quatro Poetas da Net” (Edições Sete Sílabas, 2002) e “Sob os teus pés a terra” (Artefacto vertente editorial da Cossoul, 2011); participou em “Divina Música”, Antologia de Poesia sobre Música, Viseu, 2010.
Mantém os blogues de poesia e tradução: Metade do Mundo e  Mudanças & Cia

 

“A mamã por cima dos telhados e o meu amor”

 

– RECENSÃO –

A mamã por cima dos telhados e o meu amor: ou um “ramo da história incestuosa do Amor”

 

_____“Não será o medo da loucura que nos forçará a pôr a meia-haste a bandeira da imaginação” anuncia a epígrafe de A mamã por cima dos telhados e o meu amor da poeta portuguesa Maria Azenha. Citação retirada do Primeiro Manifesto do Surrealismo de André Breton, não é de se espantar que seja o surrealismo uma das forças abertamente expressas que percorre o livro, em conjunção com um dos topos de maior relevância psicanalítica: a função materna.
_____O volume, que se inicia com o poema “Tabernáculo”, sentencia: “Submeto os poemas à maternidade./ E são os mais amados.” (AZENHA, 2019, p. 9), para depois ser finalizado com a composição “O poema”:

Era a luz reunida numa alva manhã

E o seu pequeno coração
Unido ao meu
Combatia a grande solidão de Deus

Ouviu o som do mar

Depois começou a desintegrar-se

(ibidem, p. 74)

_____Tabernáculo, santuário portátil onde os hebreus guardavam e transportavam a arca da aliança e demais objetos sagrados, é evidentemente uma analogia ao corpo materno, cuja aliança psicocorpórea entre mãe e filha(o) muito comunga da sacralidade da relação do humano com o divino, conforme a justaposição de corações dos versos de “O poema” dá a perceber. No entanto, diferente de Deus, entidade individuada e masculina, o pequeno coração indiferenciado bate juntamente do da carne materna na “luz reunida numa alva manhã”, combatendo assim a solidão divina descorporificada, até, com o som do mar (elemento masculino), desintegrar-se (meus grifos). E poderíamos dizer isso: A mamã por cima dos telhados e o meu amor é um livro de luto, o qual aborda o difícil processo de separação do corpo materno, da cisão da submissão da(o) filha(o) à maternidade.
_____Em seu livro La Révolution du langage poétique, Julia Kristeva define o termo chora como uma fase no desenvolvimento psicossexual do sujeito caracterizada como um ritmo constantemente em movência que precede a significação linguística, uma não-expressiva totalidade que tem o poder de ressurgir de seu espaço reprimido no interior do domínio simbólico. Relacionado intimamente com a fase pré-Edipiana, o conceito é conectado ao maternal, o marginal, o poético e musical, não estando diretamente sujeito a uma forma sensível capitalista ou patriarcal, ainda que as diferentes pulsões que a compõem estejam “organizadas segundo várias restrições impostas ao corpo envolvidas no processo semiótico pela família e estruturas sociais” (KRISTEVA, 1984, p. 93).
_____Sua vinculação a uma fase pré-Edipiana é identificada como um momento em que o corpo materno ainda está em uma relação de continuidade com o da criança, um estado anterior à individuação do ego. Assim, se o simbólico, instaurado pelo complexo de Édipo, baseia-se na rejeição da mãe, a chora, mediante ritmos, jogos sonoros e repetições, recupera o corpo materno na linguagem ao abalar a dicotomia sujeito/objeto que o desejo implica, recuperando uma espécie de gozo que precede o surgimento do desejo. Dessa maneira, para Kristeva, a poesia e a maternidade representariam práticas privilegiadas no interior da cultura paternalmente sancionada de subversão cultural.
_____Em A mamã por cima dos telhados e o meu amor, o título “Mãe, ramo da história incestuosa do amor” não deixa dúvidas aos leitores da vinculação libidinal dos poemas com o materno. Ao mesmo tempo que ao longo dos poemas afirma-se a perda da mãe ( “Ó minha mãe, onde estás? / Ouves-me do céu?…” (AZENHA, 2019, p. 17) de “Carta submersa”, “Mãe – é dezembro/ Se morreste porque fazes/ Tanta força contra os números? (ibidem, p. 46) de “Com toda a força na paisagem”), o eu-lírico promulga a potência da figura perdida no insistente endereçamento e apelo à imensa e sexualizada força materna, tornando-a viva: “Mamã,/ Vem depressa buscar os meus beijos incendiados/ Para levar o mundo a escrever mais livros…” (ibidem, p. 27) de “A mamã por cima dos telhados e o meu amor”, “E sinto-me estranha aos teus símbolos./ E quero vê-los,/ Quero tocá-los no teu útero./ (…) Quero encerrar-me aí contigo/ e fazer o meu poema de guerra.” (ibidem, p. 38) de “Mãe, ramo da história incestuosa do amor”, “Mamã!.,/ Envia um telegrama a todos os jornais, anuncia/ Com o meu coração em febre,/ Com todos os meus punhos cerrados como que a rezar,/ Que fumo Camboja, liamba, (…),”(ibidem, p. 40) de “Mamã! Mamã Federal”.
_____Se no surrealismo o inconsciente funciona como uma fonte primordial de criação artística e, portanto, de entendimento do mundo, vê-se no livro de Maria Azenha como a função materna age como um eixo psíquico e, consequentemente, de sentido fundamental, no qual uma diversidade profícua de imagens díspares se cumulam. Em contraposição ao Vaticano “esse grande gângster de robe,/ Que anuncia/ A paz para os domingos” (AZENHA, 2019, p. 41), Mamã é interlocutora feminina de imagens desmedidas, de mãos profanas, bordéis de lágrimas, artes de sangue. Em todos os poemas do volume verifica-se o procedimento de justaposição invulgar de elementos a que se refere Breton em seu manifesto de 1924, em que imagens de realidades semânticas aparentemente distantes são postas ao lado a fim de provocar uma resposta emotiva.
_____Manifestamente há no livro de Azenha uma estética do excesso, sendo a frequente menção à loucura como ethos poético sintoma desse transbordamento (“E sinto-me como um violino doido,/ (…) Por cima dos telhados a arder…” (AZENHA, 2019, p. 25) de “A Mamã por cima dos telhados e o meu amor”, “O meu corpo ficou de cicatrizes,/ Estou em desordem.” (ibidem, p. 39) de “Mãe, ramo da história incestuosa do amor”. ). Karen Jackson Ford, em seu livro Gender and the Poetics of Excess: Moments of Brocade (1997), aponta que a poética do excesso busca resistir e/ou transgredir as opressivas e limitantes restrições da convenção em determinadas circunstâncias históricas. O excesso para Ford é “a rhetorical strategy adopted to overcome the prohibitions imposed by the application of a disabling concept of decorum” (FORD, 1997, p. 13). Ao final da leitura de A mamã por cima dos telhados e o meu amor, apesar do eu-lírico afirmar em “A Mamã por cima dos telhados e o meu amor” que “Não gosto, mamã, deste tom destruído do mundo.” (ibidem, p. 29), resta ao leitor conjecturar sobre o que os massacres obstinadamente representados de África, Camboja, Hiroshima, “balas nos vestidos amarelos das crianças” (ibidem, p. 41), “os rios negros do terrorismo” (ibidem, p. 31), “as fezes com feiuras sacrossantas” (ibidem, p. 41) desejam libidinalmente significar quando conjugados para a expressão do amor maternal.

 

Referências bibliográficas:

AZENHA, Maria. A mamã por cima dos telhados e o meu amor. Bragança Paulista: Editora Urutau, 2019.
DÓRIA, Henrique. Apresentação da obra “De Amor Ardem os Bosques”. Silves. IV Bienal de Poesia de Silves, 22-26 de Abril de 2010.
FORD, Karen Jackson. Gender and the Poetics of Excess: Moments of Brocade. Jackson: University Press of Mississippi, 1997.
GUEDES, Maria Estela. Apresentação de A casa de ler no escuro, de Maria Azenha. Lisboa. Associação 25 de Abril, 7 de Outubro de 2016.
KRISTEVA, JULIA. Revolution in Poetic Language. Trad. Leon Roudiez. New York: Columbia University Press, 1984.



Ana Beatriz Affonso Penna

Graduada em Letras nas habilitações Português e Inglês pela Universidade Federal Fluminense (2010) e mestre pela Universidade Federal Fluminense em Estudos de Literatura (2013), lecionou na Emory University por um ano letivo (2013-2014) através do Foreign Language Teaching Assistant Program da Fulbright Association. Foi professora credenciada pela Universidade Federal do Amazonas do Plano Nacional de Formação de Professores nas turmas de Licenciatura em Língua Inglesa de 2014 a 2015. De 2016 a abril de 2017, foi professora substituta no Departamento de Letras e Comunicação da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, na área de Literatura Portuguesa e Literaturas Africanas em Língua Portuguesa. Doutorada em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense, tendo realizado de setembro de 2017 a fevereiro de 2018 estágio doutoral na Universidade do Porto. Sua pesquisa está dedicada aos estudos do texto poético em Língua Portuguesa e Inglesa, com foco na poesia contemporânea.