A viagem do artífice de Poesia


«Vivemos em cidades, em ofícios, em famílias. Mas o lugar
onde vivemos em verdade não é um lugar.”

C. Bobin

 

O ser humano busca reunir, unir, integrar a parte material do seu ser à sua contraparte espiritual. O processo inicia-se através de uma Viagem pelo Mundo da Criação, executada no plano da Dualidade. Cronos é o seu tempo, um tempo destronado. Os Antigos consideravam que a Viagem era realizada num tempo circular- um tempo sagrado- simbolizado pela serpente que morde a sua própria cauda, o Ouroboros. O Viajante prosseguirá e subirá à Montanha, à Sabedoria primordial.

Louis Claude Saint- Martin escrevia: “não há nada mais comum do que os desejos e nada mais raro do que o Desejo”. Este Desejo que não é um impulso instintivo, antes, uma emoção irresistível que provém do coração do homem, no sentido de retornar ao seio de Si- ao Coração. O Amor, parceiro da Viagem do Conhecimento, pede que a Alma, a noiva do Cântico dos Cânticos, utilizando a Via que lhe compete, descubra e reconheça o seu Mestre Interior e se funda com ele: a Alma unindo-se a Sophia.

***

Não te aproximes deste poema
No centro tem uma romã
Foi desenhado com uma esfera de silêncio

Dentro queima
Até que Deus queira destruir-lhe o Som.

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Amor, aceita este meu horto de sangue.
Plantei-o com romãzeiras e o alaúde da minha língua.

***

Vi na tua boca uma estrela de seis pontas.

Ardia num fruto da romãzeira.
E tu vieste de noite ao meu encontro.

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▪ Maria Azenha
( Portugal 🇵🇹 )
In “ A Sombra da Romã”, Poesia, “Apenas livros”, Colecção Naturarte

APRENDI

Aprendi que ninguém precisa saber que estamos tristes ou como anda a nossa vida. Aprendi que, qualquer que seja o problema que tenhamos, ele pertence só a nós.
Aprendi a guardar as dores e os momentos difíceis só pra mim. Aprendi também que os melhores textos saem sempre das mãos de quem sabe isolar-se e tem como companhia apenas o silêncio.
Aprendi igualmente que ninguém se importa como estamos, nem como foi o nosso dia. Aprendi que poucos dão valor ao que fazemos por eles, e poucos sabem valorizar a nossa companhia.
Aprendi a não me importar com a forma como agem comigo e a não guardar mágoas no coração. E, por isso, sou diferente de muitos. Aprendi a não me importar com os pensamentos de fulano ou sicrano, que não conheço, nem sabem quem sou.
E, hoje, só me importo com o bem-estar que posso proporcionar aos que amo e a viver com a felicidade no meu sorriso.


▪ Helena Sacadura Cabral
( Portugal 🇵🇹 )

J’habite une douleur

Não entregues o cuidado de governar o coração a essas ternuras semelhantes ao outono do qual imitam o ritmo plácido e a agonia afável. O olhar enruga-se precocemente. O sofrimento conhece poucas palavras. É melhor que te deites sem fardos: sonharás com o futuro e a cama ser-te-á leve. Sonharás que a tua casa não tem vidros. Estás impaciente para te unires ao vento, ao vento que numa noite percorre um ano. Outros cantarão a encarnação melodiosa, a carne que não personifica senão o feitiço da ampulheta. Tu condenarás a gratidão que se repete. Mais tarde, identificar-te-ão a um qualquer gigante desintegrado, senhor do impossível.

E no entanto.

O que fizeste apenas aumentou o peso da tua noite. Voltaste à pesca nas muralhas, à canícula sem verão. Estás furioso contra o teu amor no centro de uma conivência aflita. Idealizas a casa perfeita que nunca verás edificada. Para quando a safra do abismo? Mas tu vazaste os olhos do leão. Tu julgas ver a beleza passar por cima das lavandas negras…

O que é que te ergueu, ainda uma vez, um pouco mais alto, sem te convencer?

Não há morada pura.

 


▪René Char
( França 🇨🇵 )
Mudado para português por Soledade Santos

REFLEXÕES

Eu não poderia viver em nenhum dos mundos que me são oferecidos — o mundo dos meus pais, o mundo da guerra, o mundo da política. Tive de criar um mundo só meu, como um clima, um país, uma atmosfera em que pudesse respirar, reinar e recriar-me quando destruído por viver. Essa, acredito, é a razão de toda obra de arte.

 


▪Anaïs Nin
( França 🇨🇵 )
in “O Diário de Anaïs Nin”

 

A Ordem de Cristo não tem graus, templo, rito ou passe

Subsolo

A Ordem de Cristo não tem graus, templo, rito, insígnia ou passe. Não precisa reunir, e os seus cavaleiros, para assim lhes chamar, conhecem-se sem saber uns dos outros, falam-se sem o que propriamente se chama linguagem. Quando se é escudeiro dela não se está ainda nela; quando se é mestre dela já se lhe não pertence. Nestas palavras obscuras se conta quanto basta para quem, que o queira ou saiba, entenda o que é a Ordem de Cristo — a mais sublime de todas do mundo.

Não se entra para a Ordem de Cristo por nenhuma iniciação, ou, pelo menos, por nenhuma iniciação que possa ser descrita em palavras. Nãos se entra para ela por querer ou por ser chamado; nisto ela se conforma com a fórmula dos mestres: «Quando o discípulo está pronto, o Mestre está pronto também.» E é na palavra «pronto» que está o sentido vário, conforme as ordens e as regras.

Fiel à sua obediência — se assim se pode chamar onde não há obedecer — à Fraternidade de quem é filha e mãe, há nela a perfeita regra de Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Os seus cavaleiros—chamemos-lhes sempre assim — não dependem de ninguém, não obedecem a ninguém, não precisam de ninguém, nem da Fraternidade de que dependem, a quem obedecem e de que precisam. Os seus cavaleiros são entre si perfeitamente iguais naquilo que os torna cavaleiros; acabou entre eles toda a diferença que há em todas as coisas do mundo. Os seus cavaleiros são ligados uns aos outros pelo simples laço de serem tais, e assim são irmãos, não sócios nem associados. São irmãos, digamos assim, porque nasceram tais. Na ordem de Cristo não há juramento nem obrigação.

Ela, sendo assim tão semelhante à Fraternidade em que respira, porque, segundo a Regra, «o que está em baixo é como o que está em cima», não é contudo aquela Fraternidade: é ainda uma ordem, embora uma Ordem Fraterna, ao passo que a Fraternidade não é uma ordem.

s.d.

 
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▪ Fenando Pessoa
( Portugal 🇵🇹 )
in “Fernando Pessoa e a Filosofia Hermética – Fragmentos do espólio.”
Fernando Pessoa- (Introdução e organização de Yvette K. Centeno.) Lisboa: Presença, 1985.
“Subsolo”

Os CONVENCIDOS DA VIDA & OS INTRIGUISTAS

Todos os dias os encontro. Evito-os. Às vezes sou obrigado a escutá-los, a dialogar com eles. Já não me confrangem. Contam-me vitórias. Querem vencer, querem, convencidos, convencer. Vençam lá, à vontade. Sobretudo, vençam sem me chatear.

(…)

Andam à tua volta para ver por que fresta podem entrar para dentro de ti, da tua vida. Adulam-te. Chegam alguns a dizer que és «o maior». A despropósito. Como sabes, raramente alguém é «o maior». Medem o que escreves com marcas atléticas ou espalham que na adjectivação é que tu és forte, imbatível. Acreditas? Querem extrair de ti todo o sumo de jocosidade de que te afirmam prenhe. Contam-te como uma anedota. És tão engraçado, sabias? Irreverente é o que és, dizem outros. Brincalhão apenas, propalam uns quantos.

Quando falas ou simulas falar de ti próprio e amalgamas passado, presente, futuro, há sempre os que perguntam se o que contaste é verdade ou não. Nunca indagam se vai ser verdade. O que lhes interessa é saber, com a curiosidade dos intriguistas, se o que se passou (ou parece ter-se passado) se passou mesmo contigo. É um erro de gente vulgar. Parasitários que são, qualquer invenção ou patranha, qualquer «mentir verdadeiro» é acepipe biográfico, é pretexto para te enfileirarem na nulidade biográfica que é a deles próprios e tecerem  incansavelmente histórias a teu respeito.

Não te deixes seduzir pelo gosto da conversa. Essa pequena gente não merece a mais pequena atenção, nem tu precisas de espectadores para o salutar exercício diário de falar por falar.

E lembra-te do provérbio do Almada: «Não metas o nariz na vida dos outros se não queres lá ficar.» Do mesmo modo, não deixes que metam o nariz na tua vida. Caso contrário, vais ficar cheio de gente, com a sua vida escassamente interessante. O tombo da vida vulgar já foi feito por escritores como Camilo. E tenho a impressão de que, no essencial, a vida vulgar continua a mesma.

Desunha-te a escrever (olha que já tens pouco tempo!), mas fá-lo com a discrição e a reserva de quem não se dá às primeiras. É outro exercício salutar.

 

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▪ Alexandre O’Neill
( Portugal 🇵🇹 )

assinatura

 

ARTE POÉTICA II

A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência nem uma estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. Pede-me uma intransigência sem lacuna. Pede-me que arranque da minha vida que se quebra, gasta, corrompe e dilui uma túnica sem costura. Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta.
Pois a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso o poema não fala de uma vida ideal mas sim de uma vida concreta: ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume da tília e do orégão.
É esta relação com o universo que define o poema como poema, como obra de criação poética. Quando há apenas relação com uma matéria há apenas artesanato.
É o artesanato que pede especialização, ciência, trabalho, tempo e uma estética. Todo o poeta, todo o artista é artesão de uma linguagem. Mas o artesanato das artes poéticas não nasce de si mesmo, isto é, da relação com uma matéria, como nas artes artesanais. O artesanato das artes poéticas nasce da própria poesia a qual está consubstancialmente unido. Se um poeta diz «obscuro», «amplo», «barco», «pedra» é porque estas palavras nomeiam a sua visão do mundo, a sua ligação com as coisas. Não foram palavras escolhidas esteticamente pela sua beleza, foram escolhidas pela sua realidade, pela sua necessidade, pelo seu poder poético de estabelecer uma aliança. E é da obstinação sem tréguas que a poesia exige que nasce o «obstinado rigor» do poema. O verso é denso, tenso como um arco, exactamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos, exactamente vividos. O equilíbrio das palavras entre si é o equilíbrio dos momentos entre si.
E no quadro sensível do poema vejo para onde vou, reconheço o meu caminho, o meu reino, a minha vida.

 

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▪Sophia de Mello B. Andresen
( Portugal 🇵🇹 )
in “Geografia ( 1968)