Mendigos invadem a casa

Mendigos invadem a casa.

Já não cabem nas ruas,
foram escorraçados das praças e dos parques das cidades.

Caminharam quilómetros.
Transportam outros mendigos às costas.

Entram, ruidosos, por portas que alguém, ou alguma coisa,
abriu de par em par.

Não pedem dinheiro nem comida, pedem livros.

Alguns estão na biblioteca
e exigem que se lhe dê a ler os poemas que escolheram.

Sentam-se nas cadeiras ao acaso, deitam-se desordenadamente no chão,
distribuem-se, pensativos e sóbrios, pelas mesas que transbordam de comida.

Rezam antes de comer, pedem perdão pelas coisas que fizeram,
pelos crimes que cometeram
e pelos que voltarão a cometer.

De olhos fechados, quase imperceptivelmente, rezam movendo os lábios.

Abrem e fecham as mãos, onde brilham estrelas tatuadas.

Estão agora calmos; alguns velam, protegem os que adormeceram.

Um deles boceja, vencido pelo sono.

Outro levanta a cabeça por entre o mar de corpos enroscados
como um cão que interroga com o faro uma casa vazia, desde há muito
[fechada.

Como água correndo,
ouve-se o murmúrio inteligente de uma pessoa que chora em voz baixa.

Ninguém tem frio

No meio da imensa noite, alguém sorri.

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▪ António Ladeira
( Portugal 🇵🇹 )

 

As Cidades não existem

 

 

Voz e poema de António Ladeira

 

As cidades não existem
com os seus prédios altos
os seus jardins secretos
os seus soldados escuros.

Não existe a tarde
em que nos esquecemos de nos despedir
e ficámos a falar, horas a fio, de coisas inocentes;
as últimas notícias de um país do Norte,
a chuva inesperada nos telhados.

Sinto que o meu rosto,
que amanhã, talvez, se calará para sempre,
ainda tem coisas para dizer.

Como a manhã em que acordámos,
nus,
num país desconhecido.

 


▪ António Ladeira
( Portugal 🇵🇹 )