TESOURO

No inverno os guardas arrancaram o cobertor da
pele dos habitantes do jardim. Um deles não verá o dia.

Na primavera foram lançadas garrafas cegas
nas casas assinaladas, que se incendiaram.

À noite busquei refúgio em teu corpo
como um menino se abriga no pé de morango.

Ouvir somente a tua respiração
apoiar-me em ti da cabeça aos pés e por um instante

não ver nuvens de veneno e de ocaso
acumulando-se pesadas.

Que mais direi.

Que és na minha pobreza o tesouro oculto
que a mão deles não alcançará.

Que eu seja na tua pobreza o tesouro oculto
que o saber deles não alcançará.

 

_
▪ Tal Nitzán
( Israel  🇮🇱 )

Mudado para português do Brasil por Moacir Amancio

LAMENTAÇÕES AOS MORTOS DA GUERRA

Dia de recordação dos mortos na guerra: junta
o luto de todas as tuas ao luto da perda deles,
inclusive a perda da amada que te deixou; mistura
sofrimento com sofrimento, conforme faz à memória parcimoniosa,
ao contrair festa, sacrifício e dor, tudo num dia só,
data festiva e de fácil lembrança.
Doce mundo, embebido feito pão
em leito doce para o Deus terrível e sem dentes
“Por trás disso tudo, uma grande felicidade oculta”.
De nada te serve chorar por dentro e gritar por fora.
Por trás disso tudo, uma grande felicidade se oculta, talvez.
Dia de recordação dos mortos. Sal amargo vestido de
menina pequena com flores.
Cordas disposta ao longo do caminho
de um desfile conjunto: vivos e mortos.
Crianças com passos de luto alheio,
como se andassem sobre cacos de vidro.
A boca da flautista permanecerá assim por muitos dias.
Um soldado morto nada por entre pequenas cabeças,
com braçadas de morto, no antigo equívoco que possuem os mortos
sobre o lugar da água viva.
Uma bandeira perde o contato com realidade e voa.
uma vitrine enfeitada com vestidos bonitos de mulher,
em azul e branco. E tudo em
três línguas: hebraico, árabe e morte.
Um animal grande e majestoso agoniza durante a noite,
sob o jasmim, olhando o mundo incessantemente.
Um homem anda na rua — seu filho morreu na guerra —
como uma mulher carregando um feto morto no ventre.
“Por trás disso tudo, uma grande felicidade se oculta.”

 

_
▪ Yehuda Amichai
( Israel  🇮🇱 )
Tradução de Berta Waldman, Roney Cytrynpwicz e Tal Goldfajn.

UM PASTOR ÁRABE PROCURA UM CABRITO NO MONTE SION

Um pastor árabe procura um cabrito no Monte Sion,
e no monte à frente eu procuro meu filho pequeno.
Um pastor árabe e um pai judeu
nos seus fracassos temporários.
As nossas vozes se encontram por cima
do Tanque do Sultão no vale entre nós.
Nós dois queremos que eles não entrem,
o filho e o cabritinho, na engrenagem
da terrível máquina do Had Gadiá.

Depois nós os encontramos entre os arbustos,
as nossas vozes retornaram a nós
choraram e riram por dentro.

A procura pelo cabrito ou pelo filho
sempre foi
o começo de uma nova religião nesses montes.

_
▪ Yehuda Amichai
( Israel  🇮🇱 )
in “Terra e paz” – Antologia poética – Editora Bazar do Tempo, Brasil RJ 2018
Organização e tradução – Moacir Amâncio

*

N. do T. > Had Gadiá: canção infantil de Pessach (a Páscoa judaica) sobre a compra de um cabritinho que é devorado por um gato e este por um cão, num ciclo de vida e morte que se renova.