Entre o céu e o inferno

 
Entre o céu e o inferno
fica a cozinha.

O pão queimou.
Talvez seja um sinal.

No céu
ninguém lava a loiça.

Fico aqui, agora,
a decidir
se raspo o fundo do tacho
ou se rezo.

O diabo ri-se.
Deus não responde.

O café arrefece.

Entre o céu e o inferno
há esta cadeira
onde me sento,
sem asas
nem cornos,

mas com fome.

 

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▪ Maria Azenha
( Portugal 🇵🇹 )

 

VOLTAR PARA CASA

Voltar para casa,
dançar através dos passeios
atravessar um verso a cavalo
olhar para Deus deitado na rua.

É essa a arte que herdámos dos Anjos?

O Amor nunca perdoaria
derramar o sol pelo chão.

 

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▪ Maria Azenha
( Portugal 🇵🇹 )

*


VOLVER A CASA

Volver a casa,
bailar por los paseos,
cruzar un verso al trote,
mirar a Dios tumbado en una calle.

Es el arte heredado de los áangeles?

Nunca el Amor perdonaría
que se volcara el sol en un baldío.

 

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▪ Maria Azenha
( Portugal 🇵🇹 )

Mudado para castelhano por_ José Ángel Cilleruelo ( 🇪🇸 )

 

MÃEZINHA

Mãezinha

A terra de meu pai era pequena
e os transportes difíceis.
Não havia comboios, nem automóveis, nem camiões, nem mísseis.
Corria branda a noite e a vida era serena.
Segundo informação, concreta e exata,
dos boletins oficiais,
viviam lá na terra, a essa data,
3023 mulheres, das quais
45 por cento eram de tenra idade,
chamando tenra idade
à que vai do nascimento até à puberdade.
28 por cento das restantes
eram senhoras, daquelas senhoras que só havia dantes.
Umas, viúvas, que nunca mais (oh! Nunca mais!) tinham sequer sorrido
desde o dia da morte do extremoso marido;
outras, senhoras casadas, com filhos…
(De resto, as senhoras casadas,
pelas suas próprias condições,
não têm que ser consideradas
nestas considerações.)

Das outras, 20 por cento,
eram meninas casadoiras, seriíssimas, discretas,
mas que, por temperamento,
ou por outras causas mais ou menos secretas,
não se inclinavam para o casamento.

 

Além destas meninas havia, salvo erro, 32,
que à meiga luz das horas vespertinas
se punham a tricotar por detrás das cortinas
espreitando, de revés, quem passava nas ruas.

Dessas havia 9 que moravam
em prédios baixos como então havia,
um aqui, outro ali, mas que todos ficavam
no troço habitual que o meu pai percorria,
calmamente, no maior sossego,
às horas em que entrava e saía do emprego.

Dessas 9 excelentes raparigas
uma fugiu com o criado da lavoura;
5 morreram jovens, de bexigas;
outra, que veio a ser grande senhora,
teve as suas fraquezas mas casou-se
e foi condessa por real mercê;
outra suicidou-se
não se sabe porquê.

A que sobeja
chama-se Mariazinha.
Foi essa que o meu pai levou à igreja.
Foi a minha mãezinha.

 

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▪ António Gedeão
( Portugal 🇵🇹 )

 


Poesia dita por Vitor D’Andrade

Na pastelaria do costume

Agora já não eram marido e mulher.
Encontravam-se, às vezes, na pastelaria
do costume, e falavam só de poesia
até que não houvesse nada para dizer.
 
Depois, ficavam em silêncio alguns minutos,
a contemplar o movimento e o som da rua,
ele também a contemplava, toda nua,
por dentro dos seus olhos castos muito abertos.
 
Mas, ela já se ergue alta da cadeira,
na elegância do seu corpo, musa magra,
cuja beleza, encanto e alma são de cabra
de montanha, com maquilhagem muito sábia.
 
Ele também se ergue e oferece o seu braço
e sente um peso que é leveza e lhe dá asas,
e, enquanto caminha, plana sobre as casas,
com a alegria da morte ao rubro, passo a passo.
 
 

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▪ António Barahona
( Portugal 🇵🇹 )

Uma poeta interpretada por outra

Uma poeta interpretada por outra
Adelto Gonçalves

I

Aprofundados estudos sobre livros que fazem parte da extensa obra de Maria Azenha, talvez a mais significativa poeta portuguesa contemporânea, é o que o leitor vai encontrar  Na Casa de Maria Azenha (Lisboa, Edições Esgotadas, 2025), de Maria Estela Guedes, poeta e ensaísta.

De início, a autora deixa claro que a maior parte dos poemas de Maria Azenha revela sinais muito fortes de misticismo, de que o seu livro O último rei de Portugal (Lisboa, Fundação Lusíada, 1992) é um dos mais marcantes exemplos.

Trata-se de textos curtos, porém reflexivos, opinativos e detalhados, sobre os temas tratados em poemas da autora, ainda que sem a pretensão de esgotá-los, explorando-os de forma pessoal e crítica, além de oferecer novas perspectivas ao leitor.

Enfim, são ensaios que convidam o leitor a uma reflexão crítica sobre temas específicos, indo além da superfície e explorando suas diversas facetas.

No primeiro ensaio, “Em trânsito de signos”, em que se refere a onze obras da autora, Maria Estela ressalta que a poeta faz uma viagem iniciática no mais místico dos terrenos literários de Portugal, “quer relembrando acontecimentos notáveis, batalhas, reis, navegadores, heróis e poetas, em mais de uma centena de textos, quer deixando-se possuir pelo ritmo e cadências de alguns poemas dos autores invocados”.

Como observa a ensaísta, neste caso, o título não se refere a dom Manuel II (1889-1932), o monarca imediatamente antecessor da República Portuguesa, deposto em 1910, mas ao rei que haverá de vir, segundo a lenda que remonta a dom Sebastião (1554-1578), o “Desejado”, que foi rei de Portugal a partir de 1557 e desapareceu na Batalha de Alcácer-Quibir, o que deu origem ao mito do sebastianismo, ou seja, a crença de que ele, como um pretenso Messias, retornaria, um dia, para salvar Portugal.

Para a ensaísta, a poeta sempre esteve muito atenta à iminência de uma catástrofe mundial, “ao movimento cívico, à guerra, aos resultados desta, em especial em migrações forçadas que são pretexto para genocídio”.

Ela observa que talvez por isso, por sua experiência da desgraça ser grande, o fazer poético de Maria Azenha tende para o messianismo, “o que na mística portuguesa corresponde à crença na vinda de um rei salvador, D. Sebastião”.

Também por isso, entende a ensaísta, o tema do Mal, em modalidades variadas, entre elas a do Holocausto, e as migrações forçadas que se vê na Europa e no Oriente Médio ocorrem regularmente nos livros de Maria Azenha.

Ainda nesse ensaio de abertura, Maria Estela ressalta a oralidade presente na lírica de Maria Azenha, que se manifesta no interior dos textos. E, entre outros exemplos, a título de ilustração, observa como a autora reescreve à sua maneira o poema “O Mostrengo”, de Fernando Pessoa (1888-1935), e a passagem de Os Lusíadas, de Luís de Camões (c.152-c.1580) sobre o gigante Adamastor, citando o poema intitulado “O Cabo das Tormentas”, cujo final é o que segue: Rodou o Mostrengo, então. Rodou três vezes. / Três vezes mais rodou além de estremo; / E Deus, da velha Nau, daqueles revezes, / Tornou-se Português. Com Bojador ao leme.

II

Já no ensaio “Pequenas histórias”, a ensaísta aborda o livro A loucura das facas (2021), que reúne poemas escritos à época do confinamento provocado pela epidemia de covid-19.

E constata: “Temos assim uma névoa de revolta contra Deus, um teto baixo de nuvens negras a pressagiar desastre, uma atmosfera de tragédias à espreita ao voltarmos a página”.

Como exemplo dessa atmosfera ameaçadora, reproduz os versos do poema “No chão do medo” em que Maria Azenha recupera a apreensão que sentia à época da infância: “Em criança tinha muito medo da morte. / Agarrava-me às saias de minha mãe e escondia os olhos. / Esperava assim que ela se fosse embora / E nunca mais me voltasse a procurar. / Agora, à noite, os relógios / acordam a transpirar de medo”.

No ensaio “O tenebrismo d´A casa de ler no escuro”, a ensaísta volta a constatar que, nesta obra, composta por 33 rápidos poemas, a autora reafirma “a situação apocalíptica em que se encontram países e nações e uma Europa que posa desnuda e morta”, com versos que “apelam para a maior desgraça humanitária da Europa de nossos dias, fulcro de conflitos internacionais”.

E cita breves versos do poema “Migração”: “Limparam nossos lábios com a poeira do deserto. / Cada um que sai leva as últimas palavras”.

Mais adiante, ainda no mesmo ensaio, Maria Estela define “A casa de ler no escuro” como “retrato tenebrista do mundo e da Europa num século XXI que se esperava civilizado de grandes progressos humanitários e espirituais e não apenas progresso tecnológico”.

E conclui que a obra “é a câmara escura em que a autora vai decifrando os sinais do presente que anunciam um futuro francamente tenebroso”. Isso, porém, adverte, não significa que não haja esperança nos poemas de Maria Azenha.

E cita o poema “Lesbos” em que “a esperança que nele rebrilha é a única arma capaz de vencer a catástrofe da família, do desgoverno, da violência, da guerra e da pobreza: o amor, a compaixão dos que praticam a misericórdia”.

É o que se vê nos versos finais daquele poema: “Nos confins da terra, / passos / recomeçam, / sem balanço nem piedade, / a marcha da esperança”.

III

Em outro ensaio, ao analisar “Xeque-mate” (2018), Maria Estela diz que este livro de guerra não se assemelha a nenhum outro dela, definindo Maria Azenha como” uma escritora de alta imaginação e com grande capacidade para se renovar a si mesma”, sem deixar de destacar que nele permanecem de obras anteriores “a notação de flashes do quotidiano, a metaforização de tonalidade surrealista, que, ao deslocar atributos de um objeto para outro de forma radical, pode também provocar o riso”.

No ensaio que encerra o livro, intitulado “No lugar do outro”, Maria Estela destaca a capacidade da poeta de assumir os dramas das pessoas que a cercam, ao “deixar-se possuir pela alma alheia”.

E conta, com a devida autorização da autora, que Maria Azenha em seu mais recente trabalho, “A Casa da Memória” (2024), de certo modo, repete alguns casos já tratados pontualmente em obras anteriores, que foram inspirados na própria atividade da autora como atendente de uma linha telefônica de ajuda e apoio emocional a pessoas emocionalmente fragilizadas, ou seja, um trabalho de prevenção ao suicídio.

E lembra que Maria Azenha, como adepta do movimento filosófico e esotérico Rosa-Cruz, “vem de há muito ajudando pessoas em situações difíceis”. Daí também a presença da Alquimia em várias obras da autora.

A ensaísta cita ainda o poema “A torre do silêncio” que, ao contrário da maior parte dos outros, inspirados por conversas, faz uma homenagem ao silêncio, “como se existissem dois mundos, um exterior, regido pelas armas, e outro de tormento interior, o do silêncio”: “Não ouve os tiros da noite / nem aqueles que mais amou. / Ficou na Torre do Silêncio / no quarto sagrado da Morte, onde mais ninguém entrou”.

Do livro em homenagem a Maria Azenha, consta ainda entrevista que a autora fez com a poeta em que esta diz que a poesia é o seu “modo de respirar através de um espaço estético, de um espaço de liberdade: um espaço de reinvenção”.

IV

Maria Azenha, nascida em Coimbra, licenciou-se em Ciências Matemáticas pela Universidade de Coimbra.

Exerceu funções docentes nas Universidades de Coimbra, Évora e Lisboa. Desempenhou atividade docente no Quadro de Nomeação Definitiva na Escola de Ensino Artístico António Arroio.

É membro da Associação Portuguesa de Escritores e membro de honra do Núcleo Acadêmico de Letras e Artes de Lisboa. Frequentou o Conservatório Nacional de Música em Coimbra e tem participado de vários recitais.

É autora de mais de duas dezenas de obras de poesia. Estreou em 1987 com Folha móvel (Lisboa, Edições Átrio).

Entre os seus últimos livros, estão: A Casa da Memória (2024), O Livro do Absurdo (2023), A loucura das facas (2021), Bosque branco (2020), A mamã por cima dos telhados e o meu amor (2019), Xeque-mate (2018), As mãos no fogo (2017) e A casa de ler no escuro (2016), todos publicados pela Editora Urutau, de São Paulo, e distribuídos também na Galiza (Espanha) e em Portugal, além da obra De amor ardem os bosques (Rio de Janeiro, Editora Jaguatirica, 2018).

Maria Azenha ilustra com poemas as pinturas de Ellys no seu livro “De Camões a Pessoa – a viagem iniciática”, e é autora ainda de De Camões a Pessoa: a viagem iniciática (Lisboa, Sete Caminhos, 2006), em que explora com poemas ilustrativos a influência de Luís Vaz de Camões na obra de Fernando Pessoa.

Nesta obra, sugere uma jornada de aprendizado e transformação em que Pessoa, como herdeiro da tradição literária portuguesa, busca superar e reinterpretar a obra de Camões.

Tem poemas publicados em mais de 25 antologias. Seus versos já foram traduzidos para os idiomas italiano, espanhol e inglês.

De destaque é também o seu trabalho nas artes plásticas, já que, além de pintora com participação em várias exposições, é autora de textos publicados em livros de pintores, como Symbolos (2000), de Valdemar Ribeiro.

É ainda autora de O mar atinge-nos (2009), CD em que declama seus poemas com acompanhamento à guitarra portuguesa.

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– FONTE –